
A atual repressão do Estado alemão contra o movimento pró-Palestina, especialmente em Berlim, atingiu níveis que preocupam organizações de direitos humanos como a Amnistia Internacional, a mídia internacional e até mesmo Francesca Albanese, relatora da ONU para os territórios palestinos1.
O funcionamento desse aparato repressivo não pode ser compreendido sem o contexto histórico e político que o sustenta: a Staatsräson 2alemã, que coloca a defesa incondicional do Estado de Israel como pilar central da política nacional. Tanto é assim que, mesmo quando outros países estão começando a criticar o genocídio de Israel, a Alemanha voltou a mostrar, em 23 de maio de 2025, sua solidariedade incondicional com a entidade sionista3. Não é apenas Israel que está protegido pela Staatsräson, mas também os seus criminosos de guerra. Armin Laschet, da CDU, presidente da Comissão de Relações Exteriores, declarou esta semana, numa entrevista em que citou várias vezes a Staatsräson, que, se Netanyahu vier de visita, não será detido em território alemão, apesar do mandado de detenção internacional que pesa sobre ele.
Esta postura, adotada como uma suposta tentativa de reparação histórica pelo Holocausto, gerou uma dinâmica perigosa. Ao confundir antissionismo com antissemitismo, criminaliza-se qualquer crítica ao Estado de Israel, mesmo quando provém de ativistas judeus antissionistas ou se baseia em princípios de direitos humanos. Após décadas de criminalização e tentativas de invisibilizar a história e as reivindicações do povo palestino, o Estado alemão vem aplicando, há 20 meses, políticas autoritárias que lembram o século passado, para atacar o movimento.
O ponto de inflexão ocorreu em 7 de outubro de 2023
Quase todos os políticos alemães mostraram seu apoio incondicional a Israel, independentemente de suas palavras e ações genocidas. Para isso, foi necessário reprimir toda a solidariedade com a Palestina, na cidade com a maior comunidade palestina da Europa.
A repressão e a criminalização levadas a cabo pelo Estado alemão só podem ser entendidas como um círculo vicioso no qual participam políticos, meios de comunicação, polícia e sistema judicial.
Invocando a Staatsräson, o Ministério do Interior alemão declarou slogans como “Do rio ao mar” como propaganda terrorista do Hamas, dando carta branca à polícia para intervir violentamente nas manifestações.
Desde então, Berlim tem sido palco de detenções em massa, detenções arbitrárias e uso desproporcional da força por parte das autoridades. As manifestações pacíficas têm sido sistematicamente reprimidas. O uso de símbolos como kufiyas ou bandeiras palestinas, e até mesmo o simples fato de falar árabe em comícios estáticos, tem sido motivo de detenção. Entre as medidas absurdas ,estão a proibição de tocar tambores, cantar ou fazer discursos em línguas diferentes do alemão ou do inglês, o que consolida um controle policial sem precedentes sobre a liberdade de expressão e de reunião.
A repressão sistemática
O movimento estudantil, motor dos protestos em muitas partes do mundo, tem sido alvo de fortes ataques por parte de políticos e meios de comunicação. Acampamentos, atos simbólicos e ocupações universitárias foram reprimidos com violência policial e ameaças de expulsão. Nas escolas, alunos e professores enfrentam sanções por expressarem sua solidariedade com a Palestina, em um clima de censura institucional. Muitos desses estudantes foram denunciados por sua própria universidade e dezenas de julgamentos estão em andamento. Também nas escolas, alunos e professores são reprimidos e não podem expressar suas opiniões se forem pró-Palestina. As kufiyas, as bandeiras palestinas e outros símbolos de solidariedade são proibidos. Estas proibições provêm do próprio governo de Berlim, mais concretamente da senadora da Educação Katharina Günther-Wünsch, da CDU.
Paralelamente, num ambiente cada vez mais racista e alimentado pelos meios de comunicação social, estão sendo realizadas dezenas de deportações, dirigidas principalmente contra os refugiados palestinianos de Gaza. Quatro cidadãos ocidentais, três deles da UE, foram ameaçados de deportação imediata por terem participado em protestos estudantis, sem que houvesse qualquer condenação judicial. As ordens de deportação, atualmente em recurso, foram impulsionadas pela pressão direta do governo de Berlim. Enquanto isso, os pedidos de asilo de palestinos de Gaza estão indefinidamente paralisados.
As consequências desse clima repressivo também chegam ao local de trabalho. Há pessoas que perderam seus empregos por participar de manifestações, compartilhar conteúdos nas redes sociais ou simplesmente expressar sua solidariedade com a Palestina, e muitas delas foram vítimas de doxxing e campanhas de ódio na mídia. Entre os afetados estão funcionários públicos, guias de museus, assistentes sociais, jornalistas e empregados do setor privado. O medo do desemprego e os altos custos legais atuam como uma forma de punição econômica e psicológica.
A mídia alternativa perseguida
A imprensa alemã, em sua maioria alinhada com o discurso oficial, ao ignorar ou mentir sobre o que está acontecendo em Gaza, é essencial para este clima de assédio. Como mencionado anteriormente, as reportagens na mídia pública e privada nomeiam e envergonham os ativistas, acusando-os de antissemitismo, enquanto criminalizam todo o movimento em geral. Jornalistas críticos das ações do governo e da polícia ou que cobrem a repressão foram detidos ou agredidos. As associações de imprensa alemãs mantêm silêncio diante desses ataques, ao mesmo tempo em que lançam acusações infundadas contra a mídia e jornalistas não-sionistas.
Um caso preocupante, que continuará presente se não for revertido, é o fechamento da Red.media, um dos poucos meios de comunicação de esquerda que cobriu, tanto o genocídio em Gaza, quanto a repressão interna. O meio de comunicação enfrentou uma longa campanha de desinformação, que culminou em 20 de maio com a inclusão de seu fundador, Hüseyin Doğru, na lista de sanções da UE, o que o obrigou a abandonar seu país.
As redes sociais também são alvo de vigilância e repressão por parte do Estado. Ativistas receberam notificações de que estão sendo investigados por publicações críticas ao sionismo, em alguns casos com acusações tão graves como apologia ao terrorismo ou negação do Holocausto, embora os fatos investigados não o comprovem. Alguns deles enfrentam julgamentos.
Além disso, organizações sociais e culturais viram suas subvenções públicas retiradas por colaborar com grupos como Jüdische Stimme für gerechten Frieden im Nahost (Vozes Judaicas pela Paz no Oriente Médio), considerados “anti-semitas” por suas críticas ao governo israelense, sendo os alemães arianos, mais uma vez, os que definem quem são os judeus bons.
Citando relatórios da mídia e da polícia, o último relatório sobre a proteção da Constituição, apresentado em 21 de maio pelo Senado de Berlim, descreve o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) como um inimigo da ordem constitucional (pp. 25-30). Isso antecipa um novo ciclo de repressão contra um movimento pacífico e global que, ironicamente, foi indicado ao Prêmio Nobel em 2018.
A violência da policia como ferramenta politica
O Estado alemão, mais uma vez usando artigos da mídia como desculpa, também emprega medidas preventivas de caráter intimidatório. Os ativistas recebem visitas da polícia antes de datas importantes (1º de maio, 15 de maio, 7 de outubro) e são proibidos de participar de protestos sem uma base jurídica clara.
Após algumas detenções, algumas pessoas são mantidas em centros de detenção durante dias, como medida dissuasiva, no que parece ser uma estratégia sistemática para desmoralizar o movimento.
Em 15 de maio, na comemoração do 77º aniversário do início da Nakba em Berlim, testemunhamos muitas dessas medidas repressivas. A polícia voltou a proibir a manifestação móvel com marchas, deixando apenas uma concentração estática. Esta concentração foi cercada por uma presença exagerada da polícia de choque, que chegou preparada com caminhões de água, gás de pimenta, socos ingleses e cães. Após várias horas de detenções brutais de pessoas que entoavam slogans como “do rio ao mar”, “os sionistas são fascistas” ou “Israel mata crianças”, a polícia declarou encerrada a concentração e começou a pior brutalidade policial que já experimentamos até agora.
Os serviços de saúde presentes contabilizaram 33 feridos, com fraturas no nariz e traumatismos cranianos, entre outras lesões; quatro pessoas ficaram gravemente feridas e muitas delas acabaram no hospital. Em várias ocasiões, a polícia impediu os médicos de fazer seu trabalho e até mesmo os agrediu. Houve 88 detenções com tanta violência, que vários dos detidos perderam a consciência.
Entre outras táticas, a polícia de Berlim utilizou a manobra que matou George Floyd e, mais uma vez, ouviu-se “não consigo respirar”. Vários dos detidos foram transferidos para o centro de detenção, onde alguns passaram até 50 horas comendo somente pão duro e água. A desculpa para não deixá-los sair antes era que queriam evitar que estas pessoas participassem em mais manifestações.
Enquanto isso, vários jornalistas independentes simpatizantes da causa palestina foram detidos e, em geral, impedidos de realizar seu trabalho. A imprensa sionista, alguns deles abertamente nazistas, foi protegida pela polícia.
Essa imprensa fez seu trabalho como porta-voz da polícia e há uma semana vem falando dos policiais feridos naquele dia, a maioria deles com contusões nas mãos por terem espancado manifestantes e um que, no caos provocado por eles mesmos, caiu no chão junto com vários manifestantes e, na confusão, foi inevitavelmente pisoteado.
Os políticos utilizam os artigos da imprensa para pedir mais restrições e proibições, e maior proteção policial. E o poder judiciário notifica e atribui os casos da Nakba ao procurador-geral do Estado.
O rápido declínio do Estado democrático de direito na Alemanha e sua intenção de voltar a se tornar a maior potência militar da Europa deveriam alertar qualquer pessoa que conheça um pouco de história, mas a população alemã continua em grande parte indiferente e inativa. Assim, por enquanto, parece que apenas uma pressão internacional coordenada poderá despertar essas consciências adormecidas.
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Amnesty slams German police violence against peaceful pro-Palestinian protesters » (Amnesty Inter-
national condamna as violências da policia alemão contra manifestantes pro palestinos pacíficos,, Anadolu staff, 19 de agosto de 2024, Anadolu. Agency ; « Punched, choked, kicked: German police crack down on student protests » (Surrados, estrangulados, chutados : a policia alemã reprime as manifestações estudantis), Ruairi Casey, 25 de maio de 2024. Al Jazeera ; « Francesca Albanese on Germany & Israel »,1er mars 2025, 99 ZU EINS. - 2
"Razão de Estado", Ver «German Staatsräson means deportation?», Rosie Woodhouse, 22 avril 2025, Critical Legal Thinking.
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« Bundesrat bekennt sich zu Solidarität mit
Israel » (O Conselho Federal proclama sua solidariedade com Israel), 23 mai 2025.