 
A primavera do Hemisfério Sul começou um dia antes no Brasil. No domingo 21 de setembro, várias dezenas de cidades do país – entre as quais as grandes capitais São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Recife e Brasília – viram algo inédito nos últimos três anos: o ativismo, a esquerda e os movimentos sociais nas ruas e praças, junto a um setor popular mais amplo, igualmente indignado com duas medidas votadas pela Câmara dos Deputados. Os atos de São Paulo e do Rio foram os mais fortes desde as mobilizações pelo Fora Bolsonaro, entre 2021 e 2022, e da concentração de festejo da vitória de Lula na Paulista, em outubro de 2022.
A faísca da bronca popular foi a aprovação, pela Câmara dos Deputados, a casa congressual de composição mais reacionária da história do país, de um regime de urgência para apreciação da anistia aos envolvidos no golpe de 2022-2023. A esta se somou a aprovação apressada de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que impediria investigações e punições de qualquer tipo a parlamentares durante seus mandatos – medida rapidamente apelidada de “PEC da Bandidagem”. A votação das duas medidas mostrou placar aproximado de 350 (soma da extrema direita com a direita oligárquica tradicional reunida no “Centrão”) contra pouco mais de 150 votos contrários.
A investida reacionária das direitas no Congresso foi uma resposta à condenação de Bolsonaro e sete cúmplices do núcleo central da trama golpista de 2022-2023, pelo Supremo Tribunal Federal, em 11 de setembro. Bolsonaro e seus auxiliares-cúmplices na intentona autoritária – que incluiu um plano para assassinar Lula, seu vice, Alckmin, e o magistrado Alexandre de Moraes – foram condenados a mais de década na prisão. O julgamento e o veredito foram festejados por governos democráticos, movimentos sociais e imprensa não fascista de várias partes do mundo. Mas no terreno doméstico, os neofascistas não ficaram parados.
Vantagem frente às manifestações da extrema direita
Uma contabilidade extremamente cuidadosa aponta para a participação de mais de 600 mil pessoas nos atos – número que pode aumentar à medida que sejam contados os manifestantes em cidades do interior de estados populosos como São Paulo e Minas Gerais. Na comparação com os atos da extrema direita (o “bolsonarismo”) realizados dia 7 de setembro – para defender a anistia –, os protestos democráticos de domingo levaram ampla vantagem, numérica e de qualidade.
Convocados em menos de uma semana por uma “coalizão” de fato entre artistas progressistas e movimentos sociais – centrais sindicais, sindicatos independentes, movimentos de sem-teto, movimento negro –, depois de uma explosão de indignação nas redes sociais, os atos foram mais nacionalmente generalizados. As organizações que convocaram tiveram em seguida a adesão de partidos de esquerda (PSOL, PCdoB, PT, UP), nem tão de esquerda (PDT, PSB) e muita gente de camadas populares.
A onda de protestos marcou uma inflexão na disputa política central no país, da esquerda ampla contra o neofascismo. Ainda com importante e ameaçadora base de massas, a extrema direita brasileira vinha se valendo, desde agosto, de uma aliança explícita, sem nenhum escrúpulo de dignidade, com o governo dos EUA, para conquistar à força a anistia com a qual pretendem livrar Bolsonaro e seus amigos militares e ex-subordinados civis da prisão.
No ato de 7 de setembro em São Paulo, a extrema direita chegou a estender na avenida uma bandeira estadunidense de 20 metros de comprimento. Enquanto nos Estados Unidos, o deputado Eduardo Bolsonaro, terceiro filho do ex-presidente, fazia abertas gestões com a Casa Branca para incrementar as sanções contra o país e os juízes do processo contra os golpistas, na Câmara de Deputados, na semana passada, os neofascistas concentraram esforços em negociar com o líder direitista da casa, Hugo Motta, a tramitação rápida da anistia. Nessa negociação, os partidários de Bolsonaro valeram-se de um interesse comum com o “Centrão” (proteger-se de processos do STF em casos de mal-uso do dinheiro do orçamento destinado a deputados*) para parir a malfadada PEC da Bandidagem.
Calcularam mal. Se da briga “condenação de golpistas versus anistia” participavam mais diretamente o governo e sua base, outros partidos de esquerda e seu eleitorado, a ameaça de impunidade total para os “políticos” indignou e incendiou a raiva de camadas mais amplas da população. Num balanço conciso do domingo pré-primavera, uma das principais comentaristas da poderosa rede Globo de comunicação, Andrea Sadi analisou: “As manifestações de domingo (21) contra a PEC que blinda parlamentares de processos e a anistia deixaram a Câmara dos Deputados exposta. Os atos foram uma resposta à aprovação da PEC da Blindagem e da urgência do projeto de lei da anistia.”
Primeiros resultados
Além de terem mostrado ser possível “furar a bolha” do campo democrático e atrair povo para a rua, os atos também tiveram, segundo outros comentaristas da imprensa corporativa, duas conquistas simbólicas importantes na história recente do país polarizado. Com “ajuda” do ataque imperialista de Trump contra a economia e a soberania política do país, a esquerda recuperou para a luta (pelo menos por ora) a bandeira brasileira, há mais de dez anos mal utilizada pelos seguidores de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, foi a primeira vez desde 2013 que a indignação anticorrupção no aparelho do estado foi capitaneada pelo movimento de massas progressista.
O resultado concreto da jornada dominical, para além da recuperação do ânimo do ativismo, já se vê nos quatro deputados de direita que pediram desculpas públicas pelo voto nos projetos, no arrependimento aparente de pelo menos dois dos 12 deputados do PT que votaram com a direita, e nas promessas do presidente do Senado – que deve apreciar as propostas segundo as leis do país – de que vai dificultar a tramitação, portanto a aprovação das duas resoluções.
Nada disso – a não ser o ânimo renovado para continuar lutando – garante que Bolsonaro cumprirá a pena de mais de 27 anos de prisão, nem que a ofensiva dos corruptos reais e potenciais seja derrubada de fato. Se tomarmos de conjunto o último período desde a eleição de Lula contra Bolsonaro, o movimento social e a esquerda conseguiram um empate importante nas ruas e têm todas as condições de virar o jogo. Mas a luta será dura: a extrema direita conta não somente com o governo do país mais poderoso do mundo tomando medidas consecutivas contra o Brasil, o governo e o Judiciário brasileiro, mas também com uma carta eleitoral nada desprezível na manga – um “Bolsonaro domesticado”, um neofascista de humor controlado, em pele de bom administrador, que é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.
A situação exige que a mobilização de rua continue. E faz da disputa político-ideológica e da luta concreta dos trabalhadores e trabalhadoras de São Paulo contra Tarcísio um dos desafios centrais dos próximos meses.

 



