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A esquerda socialista do Reino Unido pode virar o jogo?

por Owen Walsh
Assembleia do partido em formação em Manchester, Reino Unido
Assembleia do partido em formação em Manchester, Reino Unido

A esquerda britânica está em meio a um processo de  formação partidária que é o mais importante desde que o Partido Trabalhista foi criado, em 1900. O processo está se mostrando lento e difícil, embora a necessidade seja urgente

A extrema direita tem se fortalecido nos últimos dois anos, e o governo trabalhista vem seguindo seus passos com menos vergonha (e menos recompensa eleitoral) do que nunca. Com o sistema bipartidário em uma crise sem precedentes, o Reino Unido está em um caminho traiçoeiro rumo a um governo de extrema direita, mas há oportunidades empolgantes para a esquerda reverter a situação.

Sábado, 13 de setembro de 2025, foi um dia memorável para os fascistas britânicos. Segundo muitos relatos, foi a maior mobilização já realizada em solo do país, com mais de 100 mil pessoas nas ruas de Londres. A manifestação foi liderada por Stephen Yaxley-Lennon (alter ego: Tommy Robinson). Um conhecido líder fascista, Robinson foi condenado por vários crimes de agressão e fraude, e estava acompanhado pelo ator fracassado Laurence Fox e pela personalidade fracassada da mídia Katie Hopkins. O evento foi transmitido ao vivo pelo bilionário supremacista branco Elon Musk.

Os antifascistas se mobilizaram em resposta e foram humilhados. A participação escassa significou que eles estavam em desvantagem numérica de aproximadamente 10:1. O policiamento desastrosamente incompetente (e possivelmente malicioso) permitiu que os fascistas cercassem a contra-manifestação. O resultado foi um cerco desmoralizante das forças antifascistas, deixando os fascistas livres para beber, assediar e atacar as pessoas com impunidade.

O que está em jogo

A chamada manifestação Unite the Kingdom (Unir o Reino) foi o culminar de um segundo verão de domínio da extrema direita nas ruas da Grã-Bretanha. Em 2024, isso assumiu a forma de motins pogrooimistas [1]. Neste verão, o elemento mais visível foi uma campanha viral para exibir as bandeiras da União e de São Jorge em casas e postes de luz. O sucesso da campanha de hasteamento de bandeiras foi acompanhado por grandes manifestações em frente a hotéis e outras residências em que estão alojados os requerentes de asilo . A maioria do eleitorado britânico agora apoia o envio de pessoas que solicitam asilo para “campos de prisioneiros”, em grande parte devido ao pânico alimentado pela mídia sobre sua ameaça sexual mitificada a mulheres e crianças.

A manifestação Unite the Kingdom não foi oficialmente apoiada por nenhum partido político, embora seu tamanho fosse sintomático, acima de tudo, da ameaça representada pelo partido extremista Reform UK. Esta é a nova forma organizacional assumida pela direita populista (historicamente representada pelo UKIP, depois pela campanha Leave e, posteriormente, pelo Brexit Party).

Há muito tempo eles são liderados por Nigel Farage, um amigo de Donald Trump que nutre ambições de replicar suas deportações em massa e ataques antidemocráticos. Com o Partido Conservador caindo para o terceiro lugar na maioria das pesquisas e sem nenhuma ideia além de imitar Farage, o Reform UK está a caminho de formar o próximo governo.

O primeiro-ministro trabalhista Keir Starmer levantou algumas objeções moderadas aos excessos ilegais dos fascistas, mas manifestou apoio aos esforços de hasteamento da bandeira da extrema direita. Enquanto isso, a resposta de Starmer à ascensão meteórica do Reform UK tem sido única: fazer a política trabalhista copiá-los tanto na forma quanto no conteúdo.

Tendo obtido uma “vitória esmagadora sem amor” nas eleições gerais de 2024, a liderança trabalhista passou seu primeiro ano no poder provando sua habilidade em desperdiçar uma vantagem. Apesar da enorme maioria parlamentar, da disciplina implacável sobre a máquina partidária, da relação favorável com a mídia de massa e das baixas expectativas do eleitorado, Starmer lidera um governo incompetente e impopular.

Ansioso por provar suas credenciais como um político capitalista confiável, Starmer revelou uma agenda legislativa desastrosamente pouco atraente. As políticas emblemáticas do governo trabalhista até agora têm sido a remoção do subsídio de combustível de inverno de milhões de aposentados vulneráveis; o corte do Personal Independence Payments, um benefício governamental destinado a garantir às pessoas com deficiência um mínimo de vida independente; e a manutenção do limite de dois filhos para os beneficiários de subsídios, o que agravou seriamente a pobreza infantil.

Isso tudo foi acompanhado por bajulação a Trump, apologia ao genocídio e transfobia. A especialidade de Starmer é implementar políticas ultradireitistas com uma monotonia tecnocrática que não empolga ninguém.

As políticas prejudiciais de Starmer foram acompanhadas por insultos. Poucos meses após assumir o cargo, Starmer e seus ministros se envolveram em um escândalo por terem aceitado uma quantidade recorde de brindes de empresas privadas. Embora o Partido Trabalhista esteja agora sendo forçado a dar uma guinada em suas medidas mais impopulares, isso só reforça a sensação de que Starmer lidera um governo inepto e sem rumo.

O apoio ao Partido Trabalhista desabou, talvez para algo em torno de 15%. Em pouco tempo, Starmer transformou uma vitória esmagadora em um dos governos mais desprezados da história recente. Apesar de sua disciplina totalitária, o Partido Trabalhista não conseguiu uma única vitória legislativa importante, enquanto sua proposta mais ambiciosa foi legalizar a eutanásia! Seria difícil imaginar um resumo mais preciso de sua mensagem política.

A esquerda: seu partido

Nas ruas e nas urnas, a esquerda britânica passou seis anos em retirada. A derrota em 2019 do Partido Trabalhista liderado por Jeremy Corbyn consolidou rapidamente uma derrota esmagadora. No entanto, o movimento pela Palestina reenergizou a esquerda, reunindo multidões recordes em várias ocasiões. No seu auge, o movimento mobilizou cerca de um milhão de pessoas.

Por meio dessa intervenção em massa e graças à perseguição beligerante de Starmer, Jeremy Corbyn foi finalmente forçado a aceitar a necessidade de liderar a formação de um novo partido. Sua esperança é reviver a insurgência progressista que impulsionou sua liderança trabalhista entre 2015 e 2019.

O processo de formação do partido foi anunciado, no entanto, por sua jovem colega, Zarah Sultana, que ficou impaciente com as hesitações, rumores e manobras nos bastidores dos associados de Corbyn. Em 24 de julho, Sultana anunciou — aparentemente sem o conhecimento de Corbyn — sua renúncia ao Partido Trabalhista e seu apoio à formação de um novo partido. Corbyn demorou estranhamente para emitir sua resposta de boas-vindas. Corbyn e Sultana, no entanto, concordaram que o nome e a política do partido serão determinados por seus membros. Nesse ínterim, ele está sendo chamado de Your Party (Seu Partido).

Depois de meses de especulações sobre a provável criação do novo partido, a base da esquerda reagiu de forma explosiva ao anúncio de Sultana. Oitocentas mil pessoas manifestaram seu interesse, o que significa que o número de possíveis membros do novo partido é várias vezes superior ao de qualquer outro partido no Reino Unido. A maioria dessas inscrições ocorreu em um único fim de semana, sem que praticamente nada tivesse sido feito para angariar apoio após a publicação de Sultana nas redes sociais.

Desde então, os desenvolvimentos têm sido lentos e, às vezes, alarmantes. Os dados extremamente valiosos coletados no processo de inscrição (essencialmente, os detalhes de contato de toda a esquerda britânica) não foram compartilhados com nenhum organizador local. Somente em meados de setembro os inscritos receberam uma atualização sobre o plano…

Para  setembro, estiveram previstos a abertura das inscrições formais e o início de um processo de consulta sobre uma Declaração Política, Constituição, Regras e Estratégia Organizacional. Isso continuou até o mês passado, juntamente com uma série ambiciosa de assembleias regionais e uma votação sobre o nome do partido. Uma conferência de fundação será realizada no final de novembro com delegados selecionados por sorteio (seleção aleatória). Paralelamente a essa agitação, haverá uma campanha massiva de porta em porta para garantir que o partido seja formado a partir da base de massa mais ampla possível.

Muito disso é uma boa notícia, embora as opiniões continuem divididas sobre os mecanismos organizacionais, como a delegação por sorteio.

Pouco depois desse anúncio, no entanto, o projeto foi lançado em uma crise aparentemente existencial. Como parte das lutas de poder nos bastidores que marginalizaram Sultana e outras figuras importantes pela camarilha de Corbyn, o gabinete da deputada buscou recuperar sua posição — e defender sua visão mais democrática do processo de formação — lançando um sistema de filiação sem a aprovação de Corbyn e dos deputados independentes.

Em um período devastador de 24 horas, isso foi recebido com uma resposta rápida e hostil do campo de Corbyn, com ameaças legais emitidas tanto por Corbyn quanto por Sultana. Desde então, a mediação acalmou as divisões entre a liderança, que agora apresenta uma frente unida, mas o dano ao ímpeto do projeto será mais difícil de recuperar, e a necessidade de controle popular agora é impossível de negar. Para que o partido funcione, a base deve assumir o controle do partido e torná-lo seu.

Facções

Jermy Corbyn defende uma estrutura federativa para o novo partido. A  disputa entre as duas alas reflete um conjunto de tensões que têm sido evidentes desde o início. Na declaração que lançou o processo, Sultana afirmou que iria “co-liderá-lo” como parceira igualitária de Corbyn. Desafiando alguns corbynistas sêniores, esta formulação foi adotada como uma declaração de oposição à coroação de Corbyn como único líder de um partido personalista.

Na realidade, Sultana tem sido a face mais visível, dinâmica e militante do partido emergente. Ela comunicou de forma inequívoca sua visão de um partido socialista liderado por seus membros, que não faz concessões em questões um tanto controversas, como os direitos dos transgêneros. Ela também tem criticado abertamente os erros da era Corbyn. Sultana, muito mais do que Corbyn, participou de comícios organizados pelos grupos  Your Party, que surgiram durante o verão.

A deputada aparece, portanto, como uma voz importante para a base da esquerda. Sua entrada enérgica na liderança nacional ao lado de Corbyn é um indício promissor do que o novo partido pode ser e de como ele pode se afastar do estilo “gentil e amável” de Corbyn, que no passado permitiu timidez diante dos ataques da direita e se baseou na gestão burocrática de seus assessores.

As intervenções combativas e perspicazes de Sultana têm sido especialmente importantes, dada a natureza heterogênea do partido em formação. A vitória de quatro novos candidatos parlamentares independentes nas eleições gerais de 2024 demonstrou as perspectivas de um desafio à esquerda do Partido Trabalhista. Cada um desses candidatos fez campanha em circunscrições eleitorais da classe trabalhadora com plataformas pró-Palestina, conquistando apoio especialmente das comunidades asiáticas. Desde então, esses deputados independentes têm atuado em aliança com Corbyn.

Mas a política dos independentes é muito heterogênea. Além de uma defesa liberal pró-Palestina e uma agenda antiausteridade, eles concordam em pouca coisa. Não têm raízes na esquerda ou no movimento trabalhista. Mais notavelmente, um deles, Adnan Hussain, defendeu concessões aos transfóbicos e a um “conservadorismo social” de inspiração religiosa.

A esquerda foi rápida em condenar tais concessões, e com razão. Os deputados independentes estarão em uma posição de poder real no novo partido, mas seus elementos menos confiáveis. Resta saber se eles aceitarão a disciplina política necessária para permanecer dentro de um partido socialista.

Embora seja necessário manter uma linha dura contra figuras como Hussain, a esquerda também precisará considerar como manter o apoio dos eleitores que ele representa. Construir uma organização que possa unir a esquerda, principalmente urbana, com os trabalhadores das cidades, incluindo alguns que são fortemente influenciados pela liderança religiosa, é um projeto de longo prazo. Será necessário habilidade política e paciência para transcender a geografia política polarizada que prevalece desde o referendo do Brexit.

A diversidade política do partido também se manifesta em vários veículos locais construídos em torno de indivíduos como Luftur Rahman (líder do grupo Aspire em Tower Hamlets, Londres) e Jamie Driscoll (líder do Majority, um partido à esquerda do Trabalhista no Nordeste da Inglaterra). Nenhum deles é firmemente socialista em sua política, embora ambos tenham estabelecido organizações eficazes que obtiveram resultados eleitorais impressionantes com uma agenda populista de esquerda.

Corbyn e Zarah Sultana

O lugar dessas organizações no novo partido levanta questões não apenas políticas, mas também organizacionais. Corbyn, por exemplo, defendeu uma estrutura federativa para o novo partido, com a visão de que isso permitiria que ele fosse uma coalizão o mais ampla possível. Essa estrutura também é preferida por alguns setores da esquerda revolucionária, embora por razões bastante diferentes: eles preferem se filiar em blocos, mantendo sua independência organizacional. Um perigo, no entanto, é que uma estrutura federal possa levar o novo partido a replicar, em vez de superar, a social-democracia “abrangente” que há muito caracteriza o Partido Trabalhista.

Por outro lado, Sultana manifestou seu apoio a uma estrutura de “um membro, um voto”, que ela considera necessária para garantir um partido de esquerda democrático e ideologicamente firme. (Sultana quer que o partido se chame The Left, ou “A Esquerda”). O modelo “um membro um voto” também é apoiado por indivíduos que divergem de Sultana em questões de política, gestão partidária ou na questão da “co-liderança”. Algumas versões desse modelo significariam, na verdade, que, em vez de uma democracia ativista, o partido seria administrado por meio de “consultas” atomizadas aos membros, o que enfraqueceria sua esquerda.

Assim, as opiniões sobre a estrutura organizacional dividem os eleitores do partido de maneiras não lineares. Essas divergências são agravadas por conflitos pessoais.

Em suma, o anúncio do partido foi feito em um conjunto confuso de circunstâncias e sem um plano coerente ou uma visão unificada de como o partido deveria ser, qual deveria ser o cronograma para sua formação ou quais estruturas deveria adotar. A responsabilidade por resolver essas questões recaiu sobre uma rede não eleita e opaca de indivíduos com suas próprias agendas — algumas políticas, outras pessoais.

É essencial que, daqui para a frente, a liderança baseada em cliques — composta principalmente por funcionários parlamentares e líderes sindicais — seja substituída por uma democracia total que represente a perspectiva política da base do partido, bem como sua diversidade regional, racial e de gênero.

Perspectivas

Embora o processo de formação tenha se mostrado frustrante, as engrenagens estão agora em movimento, e as perspectivas para a esquerda não precisam permanecer tão sombrias como parecem atualmente. O consenso da direita que governa todos os principais partidos está encobrindo um quadro muito mais complexo. 

O apoio popular à Palestina, às nacionalizações generalizadas e aos impostos sobre os ricos fornece uma base sólida para um projeto político socialista. Enquanto isso, a rejeição generalizada do establishment político deve abrir caminho não apenas para um estilo político “populista”, mas para um programa de transformação democrática com base na classe trabalhadora.

Paralelamente ao processo do Your Party, a esquerda também estabeleceu seu domínio no Partido Verde na Inglaterra e no País de Gales. Os verdes elegeram recentemente um novo líder, Zach Polanski, que está determinado a transformá-los em um veículo “ecopopulista” que defende reformas progressistas e se comunica com uma linguagem combativa.

O segundo lugar dos Verdes em cerca de 40 circunscrições eleitorais trabalhistas os coloca em boa posição para adicionar uma força importante ao movimento que desafia a esquerda do Partido Trabalhista, e já se fala em uma aliança vermelho-verde. Tal formação teria seus desafios e problemas (os Verdes não são um partido socialista), mas se abordada de maneira baseada em princípios, poderia dar frutos.

Fora da Inglaterra, o quadro é ainda mais complicado por questões constitucionais que são mais prementes na Escócia. Lá, o Partido Nacional Escocês parece disposto a capitalizar o declínio do Partido Trabalhista, embora suas credenciais progressistas e anti-establishment tenham se esvaziado significativamente, e o Partido da Reforma esteja em ascensão . Um partido de esquerda na Escócia, com autonomia substancial, liderança eficaz e um programa de classe, poderia produzir uma mudança muito necessária no campo pró-independência.

Há muitas oportunidades para uma política socialista militante, com grande número de membros, se for abordada da maneira certa. Qualquer grau de sucesso resultaria em uma pressão imensa da classe dominante sobre sua liderança para participar de coalizões. Sendo assim, é essencial que o partido parta de uma posição de clareza política e propósito firmes.

As intervenções dos socialistas revolucionários devem se concentrar em três pontos:

1. O partido deve ter uma democracia de base completa, com total transparência dos líderes eleitos e passíveis de destituição;

2. A filiação, a afiliação e, especialmente, a candidatura devem basear-se num acordo em torno de compromissos programáticos não negociáveis, incluindo a defesa dos direitos das minorias (trans, migrantes, etc.);

3. O partido precisa implementar seu programa na íntegra e estar  comprometido com a transformação socialista da sociedade como a única maneira de evitar um futuro de barbárie capitalista e o colapso ambiental. Alianças eleitorais com forças pró-capitalistas são, em qualquer circunstância, inadmissíveis.

Os socialistas revolucionários vão desempenhar um papel importante no novo partido. Podemos ser um contrapeso às pressões para acomodar preconceitos reacionários, o capital britânico e o bloco imperialista liderado pelos EUA.

Somente um partido desse tipo representará uma verdadeira ruptura com a história traiçoeira do trabalhismo.

Novembro de 2025, publicado originalmente na revista estadunidense Against the Current

(*) Owen Walsh é educador e organizador baseado em Aberdeen, na Escócia. Ele é membro do Aberdeen Marxist Caucus e apoiador da Plataforma pelo Socialismo e Independência. É autor de um livro sobre internacionalismo negro, Frontiers of Black Freedom, a ser publicado pela University of Illinois Press em 2026.