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Caiu a ditadura de Assad. E agora?

por Mounif Mulhem

No final de 2014, numa entrevista sobre o futuro da revolução na Síria, eu disse: “Não há mais opções otimistas para os sírios após as transformações que varreram a revolução »1. Mas a pior de todas as opções seria a manutenção da ditadura de Assad. No último dia 8 de dezembro, a ditadura de Assad, que governava a Síria há mais de meio século, caiu.

Foi um colapso que nenhum país conheceu na era moderna. O sistema evaporou em vinte e quatro horas. Era um dos regimes mais criminosos e brutais. O Hayat Tahrir al-Cham anunciou em seguida que controlava o poder com forças militares que não ultrapassavam os 40 mil combatentes, equipados com armamento de milícias do tipo que se encontra em muitos lugares do mundo.

Hoje posso dizer que a pior opção para a Síria – a manutenção da ditadura de Assad – está definitivamente descartada. Nunca imaginei, no entanto, nem por um momento, que uma das forças contrarrevolucionárias mais frágeis do país, o Hayat Tahrir al-Cham, que fez fracassar a revolução após a revolta de 2011, seria a alternativa à ditadura de Assad. Este recém-chegado foi uma surpresa para todos, sírios ou não, e ainda mais para os países envolvidos no conflito na Síria.

Durante os anos em que as forças de Hayat Tahrir al-Cham controlaram a cidade de Idlib e sua região, no Noroeste da Síria, travaram combates militares com as forças do regime e seus aliados (Rússia, Irã, Hezbollah), escaramuças que não alteraram o equilíbrio de forças entre as duas partes beligerantes, especialmente após a assinatura dos acordos de desaceleração em 2017. Esses acordos vieram na sequência das negociações de Astana entre o regime sírio e as forças armadas da oposição, sob o patrocínio da Rússia, da Turquia e do Irã. À luz dos antecedentes, fica nítido que as forças de Hayat avançaram muito rapidamente. Isto se deu porque o acordo entre as potências regionais e internacionais para a saída de Assad já estava fechado, um acordo patrocinado pelos Estados Unidos e cujos principais arquitetos são o presidente turco Erdogan, com o governo do Catar e o Estado sionista no circuito.

Hayat Tahrir al-Cham em Damasco

Desde o primeiro momento da entrada das forças do Hayat Tahrir al-Cham em Damasco e durante mais de um mês, todas as cidades sírias foram foi palco de grandes celebrações pela queda da ditadura. O país também recebeu um afluxo de enviados internacionais e árabes, que vieram felicitar o líder da tomada de Aleppo (a operação “Dissuasão da agressão”), Ahmed al-Charaa, conhecido pelo pseudônimo de Abou Mohammed Al-Joulani, pela queda da ditadura, e para avaliar a nova situação. A Síria se tornou um destino para agências de notícias e jornalistas de todos os países do mundo, incluindo a mídia israelense. Tudo isso foi acompanhado por uma atividade intensa das forças políticas e civis sírias, algumas ausentes há décadas, outras que surgiram como cogumelos sob o efeito do nascer do sol da liberdade após a chuva. Estas celebrações e a afluência de delegações a Damasco foram acompanhadas por incursões militares do Estado sionista, estimadas em cerca de 800 ataques destinados a destruir todo o arsenal militar construído na Síria nas últimas décadas.

Em 29 de janeiro, realizou-se no “Palácio do Povo” em Damasco a “Conferência da Vitória”, que reuniu mais de quarenta facções militares que juraram lealdade a Ahmed al-Charaa como presidente da República Árabe Síria. Este último anunciou a dissolução do exército e de todas as instituições militares do Estado, incluindo a polícia, bem como de todos os partidos e organizações anteriormente constituídos, e a formação de um governo interino para gerir a situação no país.

O movimento político e civil apelava à realização de uma Conferência Nacional Síria para a fundação de uma nova Síria, mas al-Charaa ignorou esses apelos e lançou mão da realização de uma conferência de diálogo nacional, cujas decisões não são vinculativas2. Essa conferência aconteceu, com a presença de cerca de 600 delegados designados pela Hayat Tahrir al-Cham, e na ausência de todas as personalidades nacionais e forças políticas que lutaram para derrubar a ditadura durante décadas.

Em 13 de março, foi publicada a Declaração Constitucional, que deveria regulamentar a vida política nos cinco anos da fase de transição. O presidente da República detém os poderes judiciário, legislativo e executivo, sem possibilidade de prestar contas de seus atos a nenhum órgão, seja ele legislativo ou judiciário.

As etapas mais importantes da nova Síria

Durante mais de meio século, o regime de Assad destruiu o tecido social sírio de várias maneiras e formas. O poder de Al-Charaa vai destruí-lo ainda mais. Ele já começou com atos individuais de vingança e represálias contra os chamados “fiéis do antigo regime” dentro da comunidade alauíta, levando ao assassinato de cerca de 600 cidadãos nas províncias de Homs e Hama e seus subúrbios, de acordo com informações do Observatório Sírio dos Direitos Humanos. Alguns desses assassinatos não passam de um massacre. O número de vítimas chega a dezenas em cada ocorrência, que se dão com desumanização e humilhação das vítimas. Isso antes da explosão da situação na costa síria: em 6 de março, um grupo de fiéis do antigo regime lançou uma operação militar contra as forças de segurança na região costeira, que causou dezenas de vítimas entre estas últimas. O governo de Al-Charaa respondeu convocando a jihad, por meio do Ministério da Defesa e de apelos das mesquitas. A campanha de represálias custou a vida a mais de 2 mil cidadãos inocentes em poucos dias, incluindo crianças, mulheres e idosos, num cenário de aldeias incendiadas e bens saqueados, tudo filmado pelas câmaras dos agressores. Esses eventos foram então percebidos como uma reação ao medo de um retorno do regime de Assad, perpetrados por facções descontroladas e indisciplinadas.

Em 30 de abril, no entanto, forças militares lançaram um ataque na região de Jaramana, nos arredores de Damasco, matando e ferindo dezenas de pessoas. Os atos de vingança e represália se espalharam para o sul de Damasco, onde a comunidade drusa foi alvo. Mais de 100 vítimas morreram durante operações militares de facções consideradas “incontroláveis”, acompanhadas de sequestros, prisões, assassinatos e tortura nas prisões do novo regime.

Sim, atos de vingança e represália, em vez da justiça transicional, que era a principal reivindicação dos sírios após a queda de Assad. O governo de transição não parece ter se preocupado seriamente com essa questão até o momento. Enquanto o medo dominar setores da população, enquanto continuarem os assassinatos e as humilhações e enquanto um dos principais nós, a questão curda, permanecer sem solução – apesar da assinatura de um acordo entre al-Charaa e o comandante das Forças Democráticas Sírias –, a situação geral no país permanecerá instável, com possibilidade de explosão a qualquer momento.

Os sírios alimentaram a esperança de ver suas condições de vida melhorarem após a queda do regime de Assad. Segundo relatórios das Nações Unidas, 90% dos sírios vivem abaixo da linha da pobreza. O governo de Al-Charaa prometeu um aumento de 400% nos salários dos funcionários públicos. Mas o Estado sírio não teria sido capaz de pagar os salários dos funcionários públicos se o Estado do Catar não se tivesse comprometido a pagar esses salários durante três meses. O governo também recorreu à demissão de um milhão de funcionários públicos, militares e civis. Contando com os membros das suas famílias, o número ascende a vários milhões de desprovidos de renda. O governo também adotou políticas neoliberais, liberando os preços. O preço do pão quadruplicou, e os preços dos transportes e das comunicações também aumentaram. A identidade econômica da nova Síria afirmou-se logo nos primeiros meses de liberalização econômica e abertura do mercado sírio aos produtos dos mercados vizinhos amigos, nomeadamente da Turquia.

Hoje, com o levantamento das sanções americanas, empresas árabes e internacionais se apressam em fechar acordos com o governo de transição, no âmbito do regime BOO3. Em resumo, a Síria está agora à venda para o maior lance. A questão dos deslocados, internos ou em países vizinhos, se coloca e se revela uma das mais complexas. O governo, no entanto, não se preocupa com isso: não elaborou nenhum plano para o seu retorno até o momento. 

As Nações Unidas estimam que um milhão de refugiados retornaram à Síria nos últimos meses por iniciativa própria. Alguns tentam restaurar o que resta de suas casas ou viver em tendas na aldeia que deixaram. Outros alugam moradias, apesar do aumento vertiginoso dos aluguéis. A abertura da Síria a novos mercados e a uma enxurrada de mercadorias, especialmente turcas, teve um impacto negativo sobre os produtos sírios em alguns setores, embora tenha tido um aspecto benéfico, ou seja, a redução dos preços para uma grande parte da população. Tendo em conta o déficit muito significativo da balança de pagamentos do país, essa abertura será desastrosa para a economia síria no futuro – as condições econômicas já eram desastrosas antes de Hayat Tahrir al-Cham tomar o controle de Damasco.

Os sírios têm expectativa numa melhoria das suas condições econômico-sociais, num contexto de crise crescente das infraestruturas e dos serviços (eletricidade, água, transportes e tráfego, redes de comunicação, etc.) e de escassez de empregos, especialmente para os jovens que cresceram à sombra de uma guerra que dura mais de dez anos. No entanto, essa prometida melhoria de vida tem poucas chances de se concretizar. De fato, o presente assalto do país pelos capitalistas – sejam eles antigos responsáveis do regime ou residentes no exterior, por meio de seus agentes locais –, sob um governo de transição agarrado ao poder sem qualquer legitimidade popular, sem controle nem prestação de contas, não deixará aos sírios senão migalhas.

O conflito em torno da Síria

O conflito em torno da Síria está de volta, como após a independência, com forças novas e antigas, sob formas antigas e novas. As potências árabes, não árabes da região e internacionais estão diretamente envolvidas neste conflito. Os seus elementos árabes são a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Catar. Os agentes regionais são a Turquia e o Estado sionista. Os agentes internacionais são os centros capitalistas mundiais, com o imperialismo americano à frente, que tenta controlar os conflitos regionais, nomeadamente o conflito turco-israelita. Al-Charaa tenta agradar a todos, o que é difícil, se não impossível. Parece que o que mais lhe importa é satisfazer a Turquia e o Estado sionista.

Um dos principais desafios ao governo de al-Charaa é a unificação do território sírio e a retirada das forças de ocupação. Até agora, só conseguiu estender seu controle total e efetivo sobre pouco mais da metade do território sírio. Atualmente, ele não dispõe das forças militares nem das forças de segurança necessárias para controlar o território, sem falar da presença de forças militares sírias superiores às de Al-Charaa, ou seja, as Forças Democráticas Sírias, nem das facções da província de Souweïda e da instabilidade na província de Deraa. A composição do exército fundado por Al-Charaa (que engloba facções vindas de Idlib com ele e abre o voluntariado a um único grupo de sírios) é problemática e suscita a desconfiança das outras forças sociais, especialmente após os acontecimentos na costa e no sul.

Al-Charaa conseguiu, nos últimos meses, conquistar o apoio da opinião pública com base confessional, especialmente após os eventos ocorridos primeiro na costa e depois em Suwayda, alegando a ameaça que, segundo ele, representariam os fiéis do antigo regime. De fato, a maioria dos movimentos civis e políticos não se manifestou contra as suas decisões e decretos. A participação popular assumiu a forma de reivindicações no sentido de levar à justiça os autores dos crimes cometidos pelo antigo regime ou de esclarecer o destino dos desaparecidos, através da criação de uma comissão para a justiça transicional. Mas a recente revelação de acordos firmados por algumas figuras do antigo regime com o governo de Al-Charaa, bem como a ocupação por aquelas de cargos no Comitê para a Paz Civil, criado pelo governo, provocou a ira das famílias das vítimas, que saíram às ruas para protestar contra as ações do governo.

Com exceção das forças islâmicas, a oposição política ao regime antes da revolução de 2011 era constituída por partidos nacionalistas ou de esquerda, cujo número podia ser contado nos dedos de uma mão. Ativos desde a ditadura de Assad pai, esses partidos foram submetidos a uma repressão severa, que os enfraqueceu e os tornou ineficazes. Eles também sofreram repressão sob Assad filho, com exceção de um breve período conhecido como Primavera de Damasco, em 2001. Entre o início da revolução em 2011 e a queda do regime no outono passado, dezenas de forças políticas de tendência liberal se formaram. No entanto, a maioria delas foi fundada no exterior e, portanto, sofre dos males e dos problemas da diáspora. A ausência, até o momento, de um amplo movimento popular decorre, portanto, do esgotamento da sociedade ao longo da última década, com a debilidade do movimento político e a fragmentação da oposição entre suas facções de esquerda e liberais. Estas últimas, que hoje dominam a cena política com as suas numerosas organizações, estão divididas entre as que apoiam o governo al-Charaa e as que se opõem a ele.

O aspecto mais importante da cena política atual reside na competição entre as potências internacionais para apoiar o governo Al-Charaa e seus esforços para construir um Estado Hayat Tahrir al-Cham – e não um Estado para todos os sírios –, ou seja, um Estado autoritário de caráter salafista atenuado pela natureza multirreligiosa e multiétnica da sociedade síria. Isso se manifesta especialmente em sua posição em relação às mulheres.

É muito cedo para prever como será a Síria pós-Assad. No entanto, é possível pensar que o cenário internacional que levou Hayat Tahrir al-Cham a Damasco, patrocinado e dirigido pela administração americana, reduz a autoridade no poder em Damasco a um simples funcionário encarregado de implementar o projeto imperialista de reestruturação da região árabe e do Oriente Médio como um todo. 

22 de junho de 2025

  • 1

    A derrota da revolução devido à repressão brutal do regime, à militarização e ao controle das forças armadas jihadistas, à intervenção regional e internacional, transformou o conflito em um conflito entre forças contrarrevolucionárias.

  • 2

    A conferência decorreu ao longo de dois dias. O primeiro dia foi dedicado à apresentação dos delegados. O segundo dia terminou, após cerca de cinco horas, com a publicação de uma declaração preparada antecipadamente. As suas decisões mais importantes foram a formação de um governo de transição (cuja maioria dos membros provém do Hayat Tahrir al-Cham) e a criação de um comitê encarregado de redigir uma declaração constitucional para o período de transição (publicada posteriormente para dar ao presidente al-Charaa poderes absolutos para formar as instituições legislativas e judiciais do Estado e supervisionar diretamente o trabalho do Conselho de Ministros. O presidente não está sujeito a nenhum controle judicial ou legislativo).

  • 3

    BOO: Build, Own, Operate (Construir, Possuir, Operar). BOO designa um contrato pelo qual um investidor se compromete a conceber, financiar, construir, operar e manter um projeto atribuído ao investidor por um período determinado (NDLT).

المؤلف - Auteur·es

Mounif Mulhem

Mounif Mulhem vive em Damasco. Militante do Partido da Ação Comunista, esteve preso durante 17 anos na terrível prisão de Palmira. Membro da IV Internacional, nunca desistiu de lutar contra a ditadura. (Traduzido do árabe ao francês por Luiza Toscane).