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Um marxismo clássico e queer

por Peter Drucker
Marcha do Orgulho, Pantin (França), 26 de junho de 2021. © Photothèque Rouge / Martin Noda / Hans Lucas.
Europa

Por ocasião do lançamento em inglês do livro de Alan Sears, Eros and alienation, Peter Drucker aborda as relações entre marxismo, alienação e sexualidade.

Nos últimos quinze anos, em que se deu o desenvolvimento do marxismo queer, Alan Sears se mostrou presente, mesmo antes de o marxismo queer tomar forma. Ele iniciou um diálogo construtivo com todas as figuras de proa dessa corrente e suas diferentes abordagens, desde a aplicação inédita por Kevin Floyd do conceito de reificação de Georg Lukács ao gênero e à sexualidade, até minha abordagem para a periodização do capitalismo e suas diferentes “formações homossexuais”, passando pelo uso da teoria da reprodução social por Holly Lewis para destacar o papel dos corpos generificados e, em particular, dos corpos transgêneros (1).

Desde o início do século XXI, o próprio Sears sempre relacionou o estudo da sexualidade aos fundamentos do marxismo. Ele explorou as implicações sexuais do neoliberalismo na “desregulamentação moral”. Mostrou como as lutas pela libertação sexual fazem parte integrante do processo de fundação da “nova esquerda”, após o declínio das esquerdas dos anos 1920/1930 e 1960/1970 (2). Ele também destacou mais e mais sua inspiração em pesquisadores e pesquisadoras queer racializados e racializadas, com ênfase especial no ativismo e na teoria indígenas no Canadá. Ao longo de sua obra, ele se destacou por seu compromisso inabalável com um marxismo clássico, mas contemporâneo.

Alienação

A última obra de Sears constitui sua maior contribuição ao marxismo queer até o momento. Seu título remete à obra ainda crucial de Herbert Marcuse, Eros e civilização (3), e merece figurar ao lado dela. O livro de Sears exibe suas referências clássicas, enfatizando a alienação. Apesar da importância da alienação na obra de Marx, esse conceito foi ofuscado pela 2ª e 3ª internacionais. Ele ressurgiu nos debates marxistas de meados do século XX, no contexto dos esforços para superar a social-democracia e o stalinismo, especialmente após a redescoberta do jovem Marx. No entanto, ele continuou controverso, principalmente devido à insistência de Louis Althusser de que esse conceito seria anterior ao “corte epistemológico” (4) de Marx e não tinha lugar no pensamento científico maduro de Marx. Embora Sears não aborde esses antigos debates marxológicos, ele defende implicitamente uma visão da alienação como elemento central de toda a obra de Marx, incluindo em O Capital.

Enquanto as discussões marxistas anteriores sobre a alienação eram principalmente filosóficas — relativas à alienação dos seres humanos em relação à natureza e uns dos outros — ou econômicas — relativas à alienação dos trabalhadores e trabalhadoras em relação ao processo e ao produto do trabalho —, Sears amplia o conceito para incluir a alienação das pessoas em relação ao seu corpo e à sua sexualidade. “O projeto deste livro é situar o ato sexual no contexto mais amplo da criação humana”, incluindo a alienação sexual, escreve ele. A “coerção e a violência cotidianas que moldam a organização contemporânea do gênero e da sexualidade” constituem uma “lógica anti-queer profundamente enraizada na [...] alienação do trabalho no coração do sistema”. Relacionar a alienação sexual com a alienação produtiva pode parecer “à primeira vista [...] um pouco exagerado”, admite ele, mas não quando a alienação é considerada não apenas no contexto de um emprego remunerado, mas também no contexto do trabalho reprodutivo não remunerado (“cuidados, tarefas domésticas e cozinha”).

Sears descreve a organização da sexualidade sob o capitalismo como um “compartimento erótico”. O sexo é “confinado às margens da jornada”, “muitas vezes à sombra da escuridão, alimentado apenas pela energia exaurida que resta após realizar o trabalho necessário para a sobrevivência”. Para alimentar o consumo e manter a produção, “o enquadramento moral da classe trabalhadora nas sociedades capitalistas implica um equilíbrio complexo e mutável entre a limitação e a libertação do desejo”. O sexo que daí resulta é como um alimento transformado, uma pobre simulacro. A sua verdade encontra-se na pornografia e no trabalho sexual. O “money shot” (5) na pornografia reflete “o imperativo orgásmico” imposto ao sexo nessas condições. O trabalho sexual é “uma das estratégias de sobrevivência em condições de alienação que levam os despossuídos e despossuídas a monetizar suas capacidades humanas”.

Nesse contexto, o neoliberalismo — Éros e alienação baseia-se aqui nas reflexões aprofundadas de Sears ao longo de vinte anos — intensifica especificamente a alienação capitalista da sexualidade, na qual os corpos trabalhadores, deficientes e racializados são considerados inferiores e não eróticos. No entanto, esse período também foi marcado por uma crescente normalização da homossexualidade. Grande parte dos homens gays e lésbicas conseguem hoje se encaixar no modelo do liberalismo sexual, que adota um “quadro contratual” de falsa igualdade. Nesse quadro, o consentimento formal ignora e aplana as complexidades do desejo que “pode inflamar-se e ser seguido por uma mudança de opinião em um sopro” (para citar Jacqueline Rose) (6). Desde que ambos os parceiros digam “sim” ao sexo e nenhum dos dois retire o seu consentimento, eles devem aceitar tudo o que acontece. Isso supõe ignorar as realidades do racismo, das diferenças de poder e de outras formas de desigualdade, e se um participante se sentir usado e insatisfeito, bem, ele deveria ter se lembrado de “desconfiar”. Sob o capitalismo, o desejo humano real dá lugar ao comércio da “atração sexual como propriedade alienável”, e uma vez que a isca é engolida, o negócio está fechado. Na ausência de uma comunidade unida e sustentada por um compromisso com o amor como dimensão da vida coletiva, as pessoas são deixadas à própria sorte e muitas vezes se decepcionam com a incapacidade dos encontros sexuais levarem ao relacionamento amoroso duradouro com que sonhavam.

Natureza

Um dos aspectos mais notáveis de Eros e alienação é sua contribuição para a fundação de uma ecologia queer. Sears se baseia, para isso, na distinção feita por Neil Smith entre “primeira natureza” e “segunda natureza”. Em ambos os casos, os seres humanos fazem parte da natureza, e a produção e reprodução humanas são uma interação metabólica com o resto da natureza. Na primeira natureza, porém, uma “ecologia da intimidade” tece laços entre o lar, a oficina e a linguagem em um modo de vida harmonioso (para citar a teórica indígena Leane Simpson). Na segunda natureza, o capitalismo corrói essa harmonia, produzindo uma “ruptura metabólica” (um conceito atribuído a Marx por John Bellamy Foster).

Sears desvia esse conceito de segunda natureza citando o Central Park Ramble de Nova York e outros espaços “naturais” urbanos como exemplos de uma criação humana romântica (descrita pelo ecologista marxista Andreas Malm como uma “natureza selvagem relativa”), que são perfeitos como locais de encontro para homens gays e como “oásis eróticos” da masculinidade branca. Sem “redes de mutualidade, [trata-se] de um novo tipo de solidão”, habitada por novos tipos de corpos. Na segunda natureza capitalista, corpos que se assemelham a produtos são valorizados, e as pessoas são humilhadas quando seus corpos não são “moldados pelo treino, dieta e moda”. Neste mundo, a feminista negra Roxane Gay descreveu seu próprio corpo real como “selvagemmente indisciplinado” (8). Mas os corpos sensuais e disciplinados, nota Sears, “são literalmente efêmeros, capturados em um momento fugaz de apogeu estético”. As academias que produzem corpos desejáveis reproduzem a lógica das fábricas e dependem de práticas insalubres, “com a natureza banida de sua física”.

Não podemos voltar à primeira natureza, assim como não podemos viver de forma sustentável na segunda natureza, conclui Sears. Ele adere ao conceito de Edward Saïd de uma terceira natureza, na qual a ligação com a terra (e nossos corpos) é restabelecida sobre uma nova base, incluindo a reparação das destruições ecológicas, a reparação do roubo de terras e novas relações sustentáveis com nossos corpos. Só assim a reciprocidade poderá ser restabelecida entre os seres humanos e com o ambiente natural.

Utopia

Essa utopia de uma terceira natureza é também, para Sears, uma utopia queer. Citando José Muñoz, ele considera a singularidade queer (9) “como a iluminação calorosa de um horizonte impregnado de potencialidade”. A singularidade queer não é apenas um sinônimo de LGBTQ, é “uma maneira de ver um mundo melhor que ainda não alcançamos”. “Essa libertação deve ir além da transgressão para chegar à transformação”, afirma Sears. Ele se baseia em vários pensadores para definir sua visão utópica. Por exemplo, ele adere à injunção de Dennis Altman de “desfrutar com todo o corpo”. Inspirando-se na excelente obra de M.E. O’Brien, Family Abolition (10), ele imagina um mundo de amor como “práticas compartilhadas de cuidados mútuos”. Tendo em conta o papel crescente da família na hegemonia capitalista sob o neoliberalismo, isso implica necessariamente a abolição da família tal como existe atualmente: nas palavras de O'Brien, “os horrores da família são imensos, os seus abusos generalizados, a sua lógica coerciva”. Passando de Edward Carpenter para as utopias da ficção científica (Ursula le Guin, Marge Piercy, Samuel Delany) e de Rosemary Hennessy para bell hooks (11), Sears reafirma incessantemente que o amor é essencial. E que a sexualidade pode oferecer “um antegozo da liberdade”, especialmente quando rompemos com uma abordagem transacional da mesma. Peter Drucker é militante da IVe Internacional na Holanda, formado em História pela Universidade de Yale e doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Columbia. Ele trabalha com o movimento de libertção sexual e seus debates. O texto foi publicado originalmente na New Politics.

 

Além disso, Sears não pretende ter um roteiro para um futuro glorioso de liberação sexual. Ele adota, ao invés disso, uma perspectiva de “revolução sexual permanente”, na qual uma tomada de poder a partir de baixo e em escala social pode abrir caminho para a descoberta de novos modos de vida por meio de um debate e uma experimentação permanentes.

Enquanto isso...

A data de publicação de Éros e alienação, concluída antes da reeleição de Trump, impediu Sears de abordar que não superficialmente as ameaças e os desafios imediatos mais recentes para a libertação LGBTIQ. Ele reconhece em sua introdução que a ascensão da extrema direita, em particular a atual enxurrada de transfobia e racismo, questiona a normalidade LGBTIQ “frágil e ameaçada” e as conquistas dos movimentos LGBTIQ. Responder a esse problema exigirá uma discussão aprofundada, pois a sobrevivência e a refundação da esquerda queer estão em jogo nessa luta.

Como já defendi alhures (12), uma contribuição queer plena para a luta contra a extrema direita exigirá uma ruptura clara com a homonormatividade definida por Lisa Duggan: a imitação da divisão de gêneros e famílias heterossexuais que permite à direita oferecer a possibilidade de tolerância a certos gays e certas lésbicas, mas bane as pessoas trans e não binárias para as trevas exteriores. A luta contra a extrema direita também exige uma batalha implacável contra o homonacionalismo – a cumplicidade dos LGBTIQ com o imperialismo – definido por Jasbir Puar (13). Essa ruptura com o homonacionalismo é magnificamente ilustrada pela participação radical dos queers na solidariedade com a Palestina. Como o próprio Sears foi ativo na solidariedade com a Palestina, estou convencido de que ele concordaria comigo neste ponto. Não tenho dúvidas de que ele poderia dar uma contribuição importante a esta discussão, relacionando e aprofundando sua análise de Éros e alienação. Estou ansioso para ler e trocar ideias com ele sobre suas reflexões nesse sentido.

Verão de 2025

notes

1) La réification du désir: Vers un marxisme queer, Kevin Floyd, 2009 (Amsterdã, 2013); Peter Drucker, Warped: Gay Normality and Queer Anticapitalism (Leiden/Chicago: Brill/Haymarket, 2014/2015); Holly Lewis, The Politics of Everybody: Feminism, Queer Theory, and Marxism at the Intersection (Londres: Bloomsbury, 2024, éd. rév.).

2) Alan Sears, «Queer in a Lean World», revista Against The Current 89 (novembro-dezembro de 2000); Alan Sears, The Next New Left: A History of the Future (Halifax, NS: Fernwood, 2014).

3) Éros et civilisation – Contribution à Freud, 1963, Les Éditions de Minuit.

4) Nos artigos reunidos em Pour Marx, Louis Althusser transpôs para o desenvolvimento intelectual de Marx a concepção bachelardiana de uma ruptura entre as teorias científicas e a experiência comum (ideologia) e identificou nela um “corte epistemológico”. Segundo Althusser, convém distinguir na obra de Marx um período de juventude, “ideológico”, que traz a marca da antropologia de Feuerbach, e um período “científico”, que se inicia em 1845-1846 com as Teses sobre FeuerbachA Ideologia Alemã, e durante o qual Marx teria desenvolvido tanto uma nova ciência da história quanto uma nova filosofia. Repensar a «ruptura epistemológica». Ler Marx com e contra Althusser, por Urs Lindner, 19 de maio de 2011.

5) No cinema, cena espetacular e cara que visa atrair o público. Por extensão, na pornografia, a cena da ejaculação masculina cumpre o mesmo objetivo.

6) “I am a knife”, Jacqueline Rose, London Review of Books, 22 de fevereiro de 2018.

7) John Bellamy Foster, Marx écologiste, 2011, Éditions Amsterdam.

8) “I am a knife”, op. cit.

9) Peter Drucker usa o termo queerness, que designa a qualidade, o estado ou a essência do que é queer.

10) M.E. O’Brien, Family Abolition: Capitalism and the Communizing of Care (Londres: Pluto Press, 2023).

11) Gloria Jean Watkins, conhecida pelo pseudônimo bell hooks (escrito sem maiúscula), nascida em 1952 e falecida em 2021 no Kentucky, foi uma intelectual, acadêmica e ativista americana, teórica do black feminism.

12) Peter Drucker, “Antissemitismo de extrema direita e heteronacionalismo: construindo a resistência judaica e queer”, Historical Materialism (vol. 32, n° 1, 2024).

13) Lisa Duggan, O crepúsculo da igualdade? Neoliberalismo, política cultural e o ataque à democracia (Boston: Beacon Press, 2003); Jasbir Puar, Agrupamentos terroristas: homonacionalismo em tempos queer (Durham, Carolina do Norte: Duke University Press, 2007).

 

 

 

traducteur
Gustavo Seferian

المؤلف - Auteur·es

Peter Drucker

Peter Drucker a été co-directeur de l’Institut international de recherche et formation (IIRF-IIRE) d’Amsterdam. Il collabore à la revue socialiste étatsunienne Against the Current et a publié Warped : Gay Normality and Queer Anti-Capitalism, (Haymarket Books, Chicago 2015).