
Portugal está passando por um importante movimento à direita, visível principalmente no resultado das últimas eleições legislativas. Essas dificuldades são provocadas pelos efeitos da crise mundial no país, segundo nosso entrevistado Jorge Costa*, dirigente do Bloco de Esquerda.
Como você analisa o resultado das últimas eleições (para dar elementos concretos aos nossos leitores)?
A maior transformação ocorrida a 18 de maio foi o crescimento do partido Chega (CH, extrema-direita), que se torna o segundo maior, com 60 deputados, mais dois do que o Partido Socialista. Na nova composição parlamentar, nenhum dos três maiores partidos (direita: PSD+CDS, 31%; extrema-direita: CH, 23%; Partido Socialista 23%) pode compor maioria com partidos mais pequenos. A vigência do governo da direita dependerá assim da viabilização das suas principais leis, desde logo o orçamento do Estado, pelo CH ou pelo PS, não havendo neste momento qualquer acordo pós eleitoral estabelecido.
Ao contrário do que sucedia até maio, a possibilidade de acordos parlamentares com o CH passou a ser abertamente admitida pelo PSD. O quadro parlamentar torna-se assim altamente permeável aos conflitos e tensões sociais, incluindo aqueles criados em torno de “percepções” para alimentar o discurso de ódio sobre segurança e imigração.
Por outro lado, os deputados à direita do PS ultrapassam pela primeira vez o limiar de dois terços do total necessário para alterar a Constituição. Este facto introduz um risco real de modificação regressiva do regime constitucional, uma velha ambição da direita. Os ultra-liberais da Iniciativa Liberal (5%) e o CH já anunciaram o seu apoio a essa eventual revisão.
O Bloco de Esquerda tem o pior resultado eleitoral da sua história (2%) e fica reduzido a uma única deputada (a coordenadora do partido, Mariana Mortágua), atrás do Livre (4%) e do PCP (3%). Recorde-se que, entre 2015 e 2022, o Bloco foi, com 10% e 19 deputados, o maior partido de uma área política que somava 20% dos votos: Bloco+PCP+Livre (verts européens) + PAN (animalistes). O conjunto destes partidos está hoje reduzido a metade dos votos e a um terço dos deputados.
O que revela a ascensão da extrema direita, que é a grande novidade, no contexto e na história de Portugal?
O resultado da extrema-direita demonstra a sua capacidade de manter o eleitorado que recuperou à abstenção em 2024, aumentando-o em todo o território, com destaque para zonas mais deprimidas socialmente, do interior e das antigas cinturas industriais. O CH torna-se primeiro partido nos distritos a sul do rio Tejo (Setúbal, Portalegre, Beja, Faro - que no passado eram liderados pelo PCP e pelo PS -) O CH passa de facto a disputar o governo. Esta nova situação vai traduzir-se numa degradação geral das condições de exercício da democracia, tanto no parlamento (onde o CH conduz há vários anos uma estratégia de esgotamento das condições de debate e expressão), como na sociedade, com a banalização da violência racista e fascista.
A ocupação do centro do debate político pelo tema da imigração foi um fator importante para o desaire das esquerdas. Portugal sofreu uma das mais profundas transformações na sua composição social e no perfil da classe trabalhadora. Em poucos anos, o número de trabalhadores estrangeiros multiplicou-se por dez e corresponde hoje a cerca de um terço da população ativa. Um segmento relevante desta nova classe trabalhadora não vem de países de língua portuguesa. A narrativa da extrema-direita foi potenciada pela falência dos serviços de atendimento e regularização e pelo desinvestimento em respostas abrangentes na habitação, serviços públicos e acesso à língua. O governo usou uma versão própria da retórica securitária e xenófoba na justificação da nova legislação anti-imigrante, auxiliado pelos recuos na posição do PS sobre o tema. Essa narrativa foi popularizada pelo sensacionalismo de alguns meios de comunicação social e sobretudo pela manipulação de massas através das redes sociais. De facto, a extrema-direita conseguiu transformar a imigração na explicação mais aceite para as dificuldades da vida da população.
Continua a ser central a ação antirracista e antifascista, a criação de espaços comuns e unitários, a expressão de um programa de transformação social nos territórios populares onde se enraíza hoje o autoritarismo e o discurso de ódio. É crucial encontrar formas de abrir os sindicatos aos trabalhadores estrangeiros, de criar mecanismos de inclusão, de impedir a exploração de diferenças para promover ressentimento social e a divisão da classe trabalhadora.
Como você vê o futuro das discussões dentro da classe dominante e as possibilidades de desenvolvimento dessa extrema direita?
Montenegro vê na atual relação de forças parlamentar a ocasião para retomar, com apoio do CH e da IL, uma contra-reforma laboral - deixada em suspenso com a queda do governo da troika (liderado por Passos Coelho até 2015) - e assim retirar a pouca proteção que ainda resta aos trabalhadores e introduzir restrições ao direito à greve e desregulamentação de horários. É uma guerra ao trabalho e à organização coletiva dos trabalhadores.
Depois de um primeiro ano de governo interrompido pelas eleições, a direita discursa e legisla em disputa com o CH pelo senso comum xenófobo e dá sinais de querer aprofundar a sua radicalização à direita - no discurso, na estrutura governativa, na composição do governo, no programa (em grande parte escondido durante a campanha eleitoral pela AD: revisão das leis laborais e do direito à greve, antecipação da meta dos gastos em defesa, legislação anti-imigrante. Ao ponto de o novo líder do PS, José Luís Carneiro, colocar em causa a disponibilidade - inicialmente anunciada pelos socialistas - para viabilizar os orçamentos do Estado do governo Montenegro.
Nas suas hesitações, o centro político português segue o modelo europeu na sua decomposição: capitulação liberal, com agravamento das desigualdades e do ressentimento social, adesão ao senso comum xenófobo e securitário que confirma as teses da extrema-direita. Os partidos à esquerda do PS devem reconhecer a mudança histórica que representa a atual posição do CH e impedir que a luta política se resuma à dialética entre o neofascismo ascendente e o centrão liberal em crise.
O resultado é difícil para o Bloco, como você analisa esse recuo, enquanto o PS recua menos?
Entre 2015 e 2022, o Bloco foi o maior partido de uma área política (Bloco+PCP+Livre+PAN) que somou 20% dos votos. Na sua pluralidade, apoiou propostas e projetou alternativas de progresso social e de justiça climática, tendo o potencial para se afirmar como um campo político autónomo. Quatro anos depois dos acordos da “geringonça”, estes partidos mantinham-se nos 20%, beneficiando de terem garantido, entre 2015 e 2019, uma estabilidade política assente numa (modesta mas real) redistribuição de riqueza: reversão de cortes e impostos, aumento do salário mínimo, passes, manuais, fim de taxas no acesso à saúde. Nesse período, o PS manteve impasses graves nos serviços públicos, mas o plano liberal de Passos Coelho (a começar na privatização da Segurança Social) foi travado pela força da esquerda. Uma vingança política e de classe ficou então por fazer.
Quando o contexto internacional (covid, inflação, guerra) agravou a pressão sobre os salários, a habitação e os serviços públicos (em particular a saúde) - e apesar de certo alívio da pressão da UE e de a direita estar em minoria -, o PS recusou qualquer reforma, preferindo provocar eleições para livrar-se da pressão dos partidos à sua esquerda, de cujos deputados dependia no parlamento. Sem atuação articulada na rejeição dos orçamentos de estagnação, os partidos à esquerda do PS ficaram mais vulneráveis à tática hostil do então primeiro-ministro, António Costa - que lhes imputou a culpa da crise política. Perderam representação em 2022, quando o PS alcançou uma efémera maioria absoluta, e de novo em 2024, depois desta implodir entre fumos de corrupção.
Nas novas circunstâncias políticas o Bloco reviu o seu modelo de campanha eleitoral. Não abandonámos batalhas programáticas que fazem a identidade do Bloco, como os serviços públicos, igualdade ou a rejeição da xenofobia, ou a oposição ao militarismo, mas concentrou-se em poucos temas marcantes: o teto às rendas na habitação, os direitos de quem trabalha por turnos e o imposto sobre as fortunas. Foi também desse modo que evitámos uma discussão vazia sobre governabilidade, apontando as medidas que permitiriam mudar de vida para partes significativas da população e que a nossa representação parlamentar disputaria em qualquer circunstância. Essa política teve efeito: a questão dos tetos às rendas foi importante no debate político, obrigou todos os nossos adversários a pronunciarem-se, foi reforçada pelas notícias crescentemente alarmantes sobre a crise da habitação e foi identificada por parte da população como uma resposta válida. Continuará a ser uma das lutas mais importantes para a vida do nosso povo. No entanto, nenhuma delas impulsionou uma recuperação eleitoral.
A nossa campanha favoreceu iniciativas descentralizadas de contacto direto, através do porta a porta. Fomos a mais de vinte mil casas e iniciamos uma forma de ação política que será fundamental no futuro. Fizemo-lo de modo diferenciado no país, mobilizando jovens militantes, aderentes recentes e mais antigos, que verificaram como podiam intervir diretamente e não como espectadores da campanha eleitoral. Pela mesma razão, substituímos os tradicionais comícios por “conversas de café”, abertas ao diálogo com toda a gente, e por festas e sessões públicas criativas e animadas.
O Bloco não deixará de lutar pelo que levamos a estas eleições: por uma política popular de habitação, pelos direitos de quem trabalha, contra a desigualdade e pela qualidade e garantia de serviços públicos, contra as ameaças fascistas e pela unidade em defesa da vida democrática e das regras constitucionais que a protegem.
Isso questiona a orientação política e a utilidade do Bloco? Ou, pelo contrário, confirma a necessidade de tal organização no recuo político que vivemos em escala mundial?
Na nova fase, a convergência no espaço à esquerda do PS é uma condição da vitória democrática face à direita radicalizada. Isolada, nenhuma das forças de esquerda será suficiente para enfrentar esta ascensão das direitas. Todas as forças políticas, ativistas sociais e sindicais desta área, são chamados à constituição de um campo que seja referência transformadora, em choque com a governação de direita apoiada ao centro (PS).
Esse caminho de aproximação e convergência é difícil, mas é o do Bloco. Ele deve ter expressão eleitoral e deve construir espaços e experiência social comuns, sem abandonar nenhuma bandeira - das lutas laborais ao movimento estudantil, do feminismo aos direitos LGBTQI+, da fraternidade com os imigrantes ao antimilitarismo.
É certo que há fortes diferenças neste campo: o Livre alinha-se pratica um europeismo sem crítica e fortes ambiguidades sobre as questões do armamento. Pelo lado do PCP, aos erros de leitura resultantes de um “campismo” sem freios, junta-se o sectarismo que se impõe ao ritmo do recuo da influência do partido. O movimento sindical paga o preço maior, na atrofia sectária dos sindicatos da CGTP, já ameaçados pela direitização da sociedade. Todavia, há experiências recentes de mobilizações efetivamente unitárias e que apontam caminhos - nas periferias da capital, na habitação, no antirracismo e na resposta à violência policial e dos bandos fascistas. No calor dessas lutas e na abertura desses espaços deverão forjar-se solidariedades que revelem os contornos de uma alternativa transformadora que enfrente e possa vencer as expressões do ódio que se mobilizam. O papel do Bloco de Esquerda é insubstituível em todos esses debates e processos de luta.
Como você vê a possibilidade de retomada de lutas sociais e políticas em seu país?
Como em muitos países, é sensível uma deslocação da opinião pública perante o genocídio em curso em Gaza. A participação da deputada do Bloco, Mariana Mortágua nesta iniciativa sinaliza o nosso compromisso com a causa palestiniana e dialoga com um sentimento de solidariedade que se amplia no país.
Ao mesmo tempo, no plano sindical, terá lugar um debate importante sobre a resposta a dar ao pacote laboral do governo, que, além de abater todos os pequenos avanços conquistados aos governos PS, avança em novos ataques. A necessidade de uma ação convergente entre as centrais de hegemonia comunista e socialista (CGTP e UGT, respetivamente) é um debate em curso com vista à convocatória de uma greve geral. Ao mesmo tempo, a derrota do governo perante o Tribunal Constitucional em aspetos essenciais da sua lei anti-imigrante (ex: entraves ao reagrupamento familiar) deu fôlego aos movimentos de imigrantes para convocatórias em setembro, que importa ligar às lutas sindicais. No plano eleitoral, a reentrée está marcada pelas eleições municipais de 12 de outubro, nas quais a extrema-direita ambiciona conquistar diversos municípios, incluindo alguns dos maiores do país (Sintra, por exemplo). O Partido Comunista terá muitas dificuldades em conservar os poucos executivos que ainda governa, mas recusou qualquer diálogo com partidos à esquerda. O Bloco disputa a eleição de vereadores em diversos municípios, incluindo coligações com Livre em mais de duas dezenas de grandes municípios. Em Lisboa e em Ponta Delgada (capital da região dos Açores), o Bloco participa em coligações alargadas ao Partido Socialista com vista a afastar maires de direita.
Em janeiro de 2026, haverá eleições presidenciais. O presidente é uma figura secundária do regime constitucional, com intervenção limitada no processo legislativo, embora tenha o poder de dissolver o parlamento. À direita e à esquerda, o cenário é de fragmentação política, com candidaturas de expressão partidária, o que torna pouco previsível o desfecho futuro. A antiga coordenadora do Bloco, Catarina Martins, é a provável candidata apoiada pelo partido.
(*) Jorge Costa começou a militar no Partido Socialista Revolucionário (PSR, secção portuguesa da IV Internacional) em 1991, aos 15 anos, participando no movimento de protesto contra a primeira Guerra do Golfo e, posteriormente, nos movimentos estudantis contra os governos do PS e do PSD. Líder do Bloco de Esquerda português desde a sua formação em 1999, foi deputado em 2009-2011 e 2015-2019. Atualmente, é membro da direção permanente do partido e da direção da IV Internacional.