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A difícil e necessária construção de uma esquerda antiliberal em Portugal

Comício político do Bloco de Esquerda em Braga, nas últimas legislativas, 2025
Comício do Bloco de Esquerda em Braga, na última campanha para eleições legislativas
Entrevista

Portugal está passando por um importante movimento à direita, visível principalmente no resultado das últimas eleições legislativas. Essas dificuldades são provocadas pelos efeitos da crise mundial no país, segundo nosso entrevistado Jorge Costa*, dirigente do Bloco de Esquerda.

Como você analisa o resultado das últimas eleições (para dar elementos concretos aos nossos leitores)?

A maior transformação ocorrida a 18 de maio foi o crescimento do partido Chega (CH, extrema-direita), que se torna o segundo maior, com 60 deputados, mais dois do que o Partido Socialista. Na nova composição parlamentar, nenhum dos três maiores partidos (direita: PSD+CDS, 31%; extrema-direita: CH, 23%; Partido Socialista 23%) pode compor maioria com partidos mais pequenos. A vigência do governo da direita dependerá assim da viabilização das suas principais leis, desde logo o orçamento do Estado, pelo CH ou pelo PS, não havendo neste momento qualquer acordo pós eleitoral estabelecido.

Ao contrário do que sucedia até maio, a possibilidade de acordos parlamentares com o CH passou a ser abertamente admitida pelo PSD. O quadro parlamentar torna-se assim altamente permeável aos conflitos e tensões sociais, incluindo aqueles criados em torno de “percepções” para alimentar o discurso de ódio sobre segurança e imigração.

Por outro lado, os deputados à direita do PS ultrapassam pela primeira vez o limiar de dois terços do total necessário para alterar a Constituição. Este facto introduz um risco real de modificação regressiva do regime constitucional, uma velha ambição da direita. Os ultra-liberais da Iniciativa Liberal (5%) e o CH já anunciaram o seu apoio a essa eventual revisão.

O Bloco de Esquerda tem o pior resultado eleitoral da sua história (2%) e fica reduzido a uma única deputada (a coordenadora do partido, Mariana Mortágua), atrás do Livre (4%) e do PCP (3%). Recorde-se que, entre 2015 e 2022, o Bloco foi, com 10% e 19 deputados, o maior partido de uma área política que somava 20% dos votos: Bloco+PCP+Livre (verts européens) + PAN (animalistes). O conjunto destes partidos está hoje reduzido a metade dos votos e a um terço dos deputados.

O que revela a ascensão da extrema direita, que é a grande novidade, no contexto e na história de Portugal?

O resultado da extrema-direita demonstra a sua capacidade de manter o eleitorado que recuperou à abstenção em 2024, aumentando-o em todo o território, com destaque para zonas mais deprimidas socialmente, do interior e das antigas cinturas industriais. O CH torna-se primeiro partido nos distritos a sul do rio Tejo (Setúbal, Portalegre, Beja, Faro - que no passado eram liderados pelo PCP e pelo PS -) O CH passa de facto a disputar o governo. Esta nova situação vai traduzir-se numa degradação geral das condições de exercício da democracia, tanto no parlamento (onde o CH conduz há vários anos uma estratégia de esgotamento das condições de debate e expressão), como na sociedade, com a banalização da violência racista e fascista.

A ocupação do centro do debate político pelo tema da imigração foi um fator importante para o desaire das esquerdas. Portugal sofreu uma das mais profundas transformações na sua composição social e no perfil da classe trabalhadora. Em poucos anos, o número de trabalhadores estrangeiros multiplicou-se por dez e corresponde hoje a cerca de um terço da população ativa. Um segmento relevante desta nova classe trabalhadora não vem de países de língua portuguesa. A narrativa da extrema-direita foi potenciada pela falência dos serviços de atendimento e regularização e pelo desinvestimento em respostas abrangentes na habitação, serviços públicos e acesso à língua. O governo usou uma versão própria da retórica securitária e xenófoba na justificação da nova legislação anti-imigrante, auxiliado pelos recuos na posição do PS sobre o tema. Essa narrativa foi popularizada pelo sensacionalismo de alguns meios de comunicação social e sobretudo pela manipulação de massas através das redes sociais. De facto, a extrema-direita conseguiu transformar a imigração na explicação mais aceite para as dificuldades da vida da população.

Continua a ser central a ação antirracista e antifascista, a criação de espaços comuns e unitários, a expressão de um programa de transformação social nos territórios populares onde se enraíza hoje o autoritarismo e o discurso de ódio. É crucial encontrar formas de abrir os sindicatos aos trabalhadores estrangeiros, de criar mecanismos de inclusão, de impedir a exploração de diferenças para promover ressentimento social e a divisão da classe trabalhadora.

Como você vê o futuro das discussões dentro da classe dominante e as possibilidades de desenvolvimento dessa extrema direita?

Montenegro vê na atual relação de forças parlamentar a ocasião para retomar, com apoio do CH e da IL, uma contra-reforma laboral - deixada em suspenso com a queda do governo da troika (liderado por Passos Coelho até 2015) - e assim retirar a pouca proteção que ainda resta aos trabalhadores e introduzir restrições ao direito à greve e desregulamentação de horários. É uma guerra ao trabalho e à organização coletiva dos trabalhadores.

Depois de um primeiro ano de governo interrompido pelas eleições, a direita discursa e legisla em disputa com o CH pelo senso comum xenófobo e dá sinais de querer aprofundar a sua radicalização à direita - no discurso, na estrutura governativa, na composição do governo, no programa (em grande parte escondido durante a campanha eleitoral pela AD: revisão das leis laborais e do direito à greve, antecipação da meta dos gastos em defesa, legislação anti-imigrante. Ao ponto de o novo líder do PS, José Luís Carneiro, colocar em causa a disponibilidade - inicialmente anunciada pelos socialistas - para viabilizar os orçamentos do Estado do governo Montenegro.

Nas suas hesitações, o centro político português segue o modelo europeu na sua decomposição: capitulação liberal, com agravamento das desigualdades e do ressentimento social, adesão ao senso comum xenófobo e securitário que confirma as teses da extrema-direita. Os partidos à esquerda do PS devem reconhecer a mudança histórica que representa a atual posição do CH e impedir que a luta política se resuma à dialética entre o neofascismo ascendente e o centrão liberal em crise.

O resultado é difícil para o Bloco, como você analisa esse recuo, enquanto o PS recua menos?

Entre 2015 e 2022, o Bloco foi o maior partido de uma área política (Bloco+PCP+Livre+PAN) que somou 20% dos votos. Na sua pluralidade, apoiou propostas e projetou alternativas de progresso social e de justiça climática, tendo o potencial para se afirmar como um campo político autónomo. Quatro anos depois dos acordos da “geringonça”, estes partidos mantinham-se nos 20%, beneficiando de terem garantido, entre 2015 e 2019, uma estabilidade política assente numa (modesta mas real) redistribuição de riqueza: reversão de cortes e impostos, aumento do salário mínimo, passes, manuais, fim de taxas no acesso à saúde. Nesse período, o PS manteve impasses graves nos serviços públicos, mas o plano liberal de Passos Coelho (a começar na privatização da Segurança Social) foi travado pela força da esquerda. Uma vingança política e de classe ficou então por fazer.

Quando o contexto internacional (covid, inflação, guerra) agravou a pressão sobre os salários, a habitação e os serviços públicos (em particular a saúde) - e apesar de certo alívio da pressão da UE e de a direita estar em minoria -, o PS recusou qualquer reforma, preferindo provocar eleições para livrar-se da pressão dos partidos à sua esquerda, de cujos deputados dependia no parlamento.  Sem  atuação  articulada  na  rejeição  dos  orçamentos  de estagnação, os partidos à esquerda do PS ficaram mais vulneráveis à tática hostil do então primeiro-ministro, António Costa - que lhes imputou a culpa da crise política. Perderam representação em 2022, quando o PS alcançou uma efémera maioria absoluta, e de novo em 2024, depois desta implodir entre fumos de corrupção.

Nas novas circunstâncias políticas o Bloco reviu o seu modelo de campanha eleitoral. Não abandonámos batalhas programáticas que fazem a identidade do Bloco, como os serviços públicos, igualdade ou a rejeição da xenofobia, ou a oposição ao militarismo, mas concentrou-se em poucos temas marcantes: o teto às rendas na habitação, os direitos de quem trabalha por turnos e o imposto sobre as fortunas. Foi também desse modo que evitámos uma discussão vazia sobre governabilidade, apontando as medidas que permitiriam mudar de vida para partes significativas da população e que a nossa representação parlamentar disputaria em qualquer circunstância. Essa política teve efeito: a questão dos tetos às rendas foi importante no debate político, obrigou todos os nossos adversários a pronunciarem-se, foi reforçada pelas notícias crescentemente alarmantes sobre a crise da habitação e foi identificada por parte da população como uma resposta válida. Continuará a ser uma das lutas mais importantes para a vida do nosso povo. No entanto, nenhuma delas impulsionou uma recuperação eleitoral.

A nossa campanha favoreceu iniciativas descentralizadas de contacto direto, através do porta a porta. Fomos a mais de vinte mil casas e iniciamos uma forma de ação política que será fundamental no futuro. Fizemo-lo de modo diferenciado no país, mobilizando jovens militantes, aderentes recentes e mais antigos, que verificaram como podiam intervir diretamente e não como espectadores da campanha eleitoral. Pela mesma razão, substituímos os tradicionais comícios por “conversas de café”, abertas ao diálogo com toda a gente, e por festas e sessões públicas criativas e animadas.

O Bloco não deixará de lutar pelo que levamos a estas eleições: por uma política popular de habitação, pelos direitos de quem trabalha, contra a desigualdade e pela qualidade e garantia de serviços públicos, contra as ameaças fascistas e pela unidade em defesa da vida democrática e das regras constitucionais que a protegem.

Isso questiona a orientação política e a utilidade do Bloco? Ou, pelo contrário, confirma a necessidade de tal organização no recuo político que vivemos em escala mundial?

Na nova fase, a convergência no espaço à esquerda do PS é uma condição da vitória democrática face à direita radicalizada. Isolada, nenhuma das forças de esquerda será suficiente para enfrentar esta ascensão das direitas. Todas as forças políticas, ativistas sociais e sindicais desta área, são chamados à constituição de um campo que seja referência transformadora, em choque com a governação de direita apoiada ao centro (PS).

Esse caminho de aproximação e convergência é difícil, mas é o do Bloco. Ele deve ter expressão eleitoral e deve construir espaços e experiência social comuns, sem abandonar nenhuma bandeira - das lutas laborais ao movimento estudantil, do feminismo aos direitos LGBTQI+, da fraternidade com os imigrantes ao antimilitarismo.

É certo que há fortes diferenças neste campo: o Livre alinha-se pratica um europeismo sem crítica e fortes ambiguidades sobre as questões do armamento. Pelo lado do PCP, aos erros de leitura resultantes de um “campismo” sem freios, junta-se o sectarismo que se impõe ao ritmo do recuo da influência do partido. O movimento sindical paga o preço maior, na atrofia sectária dos sindicatos da CGTP, já ameaçados pela direitização da sociedade. Todavia, há experiências recentes de mobilizações efetivamente unitárias e que apontam caminhos - nas periferias da capital, na habitação, no antirracismo e na resposta à violência policial e dos bandos fascistas. No calor dessas lutas e na abertura desses espaços deverão forjar-se solidariedades que revelem os contornos de uma alternativa transformadora que enfrente e possa vencer as expressões do ódio que se mobilizam. O papel do Bloco de Esquerda é insubstituível em todos esses debates e processos de luta.

Como você vê a possibilidade de retomada de lutas sociais e políticas em seu país?

Como em muitos países, é sensível uma deslocação da opinião pública perante o genocídio em curso em Gaza. A participação da deputada do Bloco, Mariana Mortágua nesta iniciativa sinaliza o nosso compromisso com a causa palestiniana e dialoga com um sentimento de solidariedade que se amplia no país.

Ao mesmo tempo, no plano sindical, terá lugar um debate importante sobre a resposta a dar ao pacote laboral do governo, que, além de abater todos os pequenos avanços conquistados aos governos PS, avança em novos ataques. A necessidade de uma ação convergente entre as centrais de hegemonia comunista e socialista (CGTP e UGT, respetivamente) é um debate em curso com vista à convocatória de uma greve geral. Ao mesmo tempo, a derrota do governo perante o Tribunal Constitucional em aspetos essenciais da sua lei anti-imigrante (ex: entraves ao reagrupamento familiar) deu fôlego aos movimentos de imigrantes para convocatórias em setembro, que importa ligar às lutas sindicais. No plano eleitoral, a reentrée está marcada pelas eleições municipais de 12 de outubro, nas quais a extrema-direita ambiciona conquistar diversos municípios, incluindo alguns dos maiores do país (Sintra, por exemplo). O Partido Comunista terá muitas dificuldades em conservar os poucos executivos que ainda governa, mas recusou qualquer diálogo com partidos à esquerda. O Bloco disputa a eleição de vereadores em diversos municípios, incluindo coligações com Livre em mais de duas dezenas de grandes municípios. Em Lisboa e em Ponta Delgada (capital da região dos Açores), o Bloco participa em coligações alargadas ao Partido Socialista com vista a afastar maires de direita.

Em janeiro de 2026, haverá eleições presidenciais. O presidente é uma figura secundária do regime constitucional, com intervenção limitada no processo legislativo, embora tenha o poder de dissolver o parlamento. À direita e à esquerda, o cenário é de fragmentação política, com candidaturas de expressão partidária, o que torna pouco previsível o desfecho futuro. A antiga coordenadora do Bloco, Catarina Martins, é a provável candidata apoiada pelo partido.

 

(*) Jorge Costa começou a militar no Partido Socialista Revolucionário (PSR, secção portuguesa da IV Internacional) em 1991, aos 15 anos, participando no movimento de protesto contra a primeira Guerra do Golfo e, posteriormente, nos movimentos estudantis contra os governos do PS e do PSD. Líder do Bloco de Esquerda português desde a sua formação em 1999, foi deputado em 2009-2011 e 2015-2019. Atualmente, é membro da direção permanente do partido e da direção da IV Internacional.