À esquerda é urgente voltar às raízes, onde o porta-a-porta, o fábrica-a-fábrica, o escola-a-escola, não se faz apenas em período eleitoral, mas porque é a forma consistente de responder à desinformação e criar enraizamento para mudar a realidade material e aprofundar a realidade da militância.
I. Introdução
1. Há 50 anos, Portugal viveu as suas primeiras eleições em democracia. Passadas cinco décadas, o país elegeu 60 deputados de extrema-direita, ameaçando assim todas as conquistas laborais e direitos fundamentais conquistados pela esquerda portuguesa desde então.
2. Os resultados das eleições de dia 18 de maio de 2025 representam a maior derrota eleitoral da esquerda desde o 25 de abril de 1974. Abriu-se a porta a uma governação maioritária da direita neoliberal com a extrema-direita, à possibilidade de uma revisão constitucional reformista e conservadora, à privatização de serviços públicos essenciais, e o medo do outro venceu.
3. A derrota da esquerda já se anunciava antes das eleições. A perda de expressão e representação dos partidos de esquerda já em eleições anteriores (PS, BE e CDU); a falta de mobilização e de enraizamento social de projetos anticapitalistas ou revolucionários alternativos; o surgimento massivo de forças à direita mobilizadoras de sentimentos e percepções de insegurança, ressentimento ou nostalgia por um passado idealizado; e a incapacidade de resposta unitária por parte da esquerda anticapitalista indicavam a necessidade de uma postura combativa que não se concretizou.
4. A crise da esquerda portuguesa tem-se manifestado, nas últimas décadas, sob múltiplas formas, destacando-se, entre elas, uma crise de natureza programática. Na última década, a crítica dirigida à esquerda anticapitalista portuguesa tem evidenciado o seu abandono de um projeto político e ideológico de longo prazo, em favor de táticas imediatas e predominantemente institucionais, bem como, o enfraquecimento da imaginação estratégica e a perda da sua capacidade de articular as lutas essenciais com um projeto histórico de superação do capitalismo. O privilégio concedido à tática, em detrimento de uma estratégia de transição e de um horizonte transformador, criou tanto no BE como no PCP severas contradições, com as quais ambos se têm debatido.
5. O PCP, apesar de manter uma maior solidez no seu programa e estratégia, tem demonstrado, na sua ortodoxia programática e rigidez ideológica, uma estrutura interna burocrática que dificulta convergências anticapitalistas mais amplas, e o impossibilitam de se atualizar à realidade de muitas das lutas imediatas.
6. O BE, por seu turno, tem vindo a abandonar uma estratégia de transformação anticapitalista consistente, em favor da tentação do imediato, muitas vezes sem coerência programática, o que dilui a estratégia anticapitalista de transição e subordina a tática à governabilidade sem horizonte revolucionário.
7. A ausência de programas claros que articulem um diagnóstico estrutural do capitalismo com a identificação dos sujeitos históricos atuais a um projeto de sociedade alternativo tem vindo a subordinar ambos os partidos a meros programas eleitorais, que apesar de justos nas reivindicações imediatas, debatem-se sem sucesso por romper com a dinâmica capitalista.
8. A experiência da Geringonça, que levou o PCP e o BE a aceitarem compromissos com políticas de austeridade indireta, demonstrou a incapacidade destes dois partidos de forçarem mudanças estruturais.
Figura 1 – Ministério da Administração Interna – Eleições Legislativas 2015, 2019, 2022, 2024 e 2025, disponíveis em: https://www.eleicoes.mai.gov.pt/.
II. O contexto em que as eleições de 2025 ocorreram
9. As eleições aconteceram porque, há alguns meses, ficámos a saber que o líder do governo de direita (Aliança Democrática (AD) constituída pela coligação dos partidos sociais-democratas cristãos PSD e CDS), Luís Montenegro, era proprietário de uma empresa familiar que recebia mensalmente pagamentos de entidades ligadas ao sector dos jogos de azar, cujas concessões são atribuídas pelo Estado. Perante um potencial conflito de interesses, iniciou-se um debate dentro e fora do parlamento que exigia ao primeiro-ministro em funções transparência. A insistência do líder do PSD, e do seu governo, em não revelar a lista de clientes, não aceitar escrutínio e recusar qualquer esforço de transparência levou à quebra de confiança no Parlamento.
10. A moção de confiança que Luís Montenegro apresentou, após duas moções de censura chumbadas, foi reprovada pela maioria dos partidos na Assembleia da República, conduzindo à sua demissão e à convocação de eleições antecipadas.
III. Os resultados eleitorais
11. O PS, derrubado em eleições há menos de 18 meses, baseou a sua nova campanha exclusivamente na denúncia de Luís Montenegro, sem apresentar uma agenda politicamente distinta da do governo cessante, que fora derrotada nas urnas nas eleições de 2024. Eleições estas que aconteceram após a demissão do então primeiro-ministro e líder socialista António Costa, após um inquérito desencadeado pelo ministério público que levantou suspeitas de corrupção ativa relacionada com projetos de mineração de lítio e produção de hidrogénio verde.
12. Apesar das múltiplas crises que o país atravessa, na habitação, na saúde, na educação, o PS não foi capaz de apresentar um programa mobilizador, que rompesse com o seu passado recente. Ofereceu o mesmo que já havia oferecido nos anos anteriores, e que o eleitorado já havia rejeitado. Acreditou que os portugueses iriam preocupar-se mais com a integridade da classe política do que com propostas concretas para melhorar a vida das pessoas. Esse foi o grande erro do PS: não perceber que, para muitos portugueses, a corrupção da classe política tem dois nomes: PSD e PS.
13. Em apenas seis anos, o partido de direita radical de André Ventura, o CHEGA, passou de 1,3% para 23%. Nem os escândalos de pedofilia, roubo e criminalidade envolvendo vários dos seus membros parlamentares conseguiram abalar o seu crescimento.
14. À esquerda, muitos acreditaram que esses escândalos iriam afetar profundamente o CHEGA, esquecendo-se de que um partido construído em torno de uma figura só se permite cair em contradição quando se atinge essa figura. Cada escândalo envolvendo deputados da extrema-direita foi gerido com mão de ferro por André Ventura, que, de forma falaciosa, mobilizando narrativas de vitimização e aproveitando-se das desconfianças estruturais, conseguiu transmitir a ideia de que “não é como os outros”, que “não é igual ao PS e ao PSD”, e que, “na sua casa, faz-se mesmo limpeza”.
15. Mas limpar a casa é apenas o discurso de fachada de uma política que, na verdade, promete expulsar de casa quem cá está. Seguindo a tendência internacional de usar as comunidades migrantes como bode expiatório para os problemas sociais, a extrema-direita virou trabalhadores contra trabalhadores, semeou o medo, invadiu o espaço da empatia e da solidariedade e espalhou ódio e exclusão.
16. A par do crescimento desta direita de nacionalismo populista imbricada em neoliberalismo, importa assinalar o aumento, ainda que residual, de partidos de extrema-direita ultranacionalistas. Estes partidos, apesar de minoritários e com uma expressão eleitoral limitada, não deixam de demonstrar uma crescente adesão a uma política de extrema-direita que ultrapassa a do CHEGA. Tal como têm vindo a denunciar diversos coletivos antifascistas, estes partidos contam, na sua base social e na sua militância, com ativistas assumidamente neonazis e fascistas, alguns deles já condenados, que procuram construir um projeto político coletivo assente em lógicas de milícia armada, traduzindo-se em agressões físicas a migrantes, pessoas LGBTQI+, e contra todas as pessoas que percebam como sendo de esquerda, seja no espaço da política ou da cultura. Por isso, a adesão de mais pessoas a estes partidos, não deve ser desvalorizada ou tratada com ligeireza. Para além de representarem a mesma política de extrema-direita que, em 1989, assassinou José Carvalho (militante do PSR), que em 1995 matou Alcindo Monteiro e que, em 2020, mobilizou o ódio racial que vitimou Bruno Candé, estes grupos mantêm ainda profundas ligações com sectores das forças policiais e militares. Tal relação facilita o seu crescimento, o acesso a armamento e a formação militar, contribuindo para o fortalecimento das milícias armadas que procuram constituir.
17. Com os resultados das últimas eleições, a direita conquista, assim, uma maioria parlamentar que ameaça o sector público, o direito à igualdade na diferença e a universalidade dos direitos sociais. E se o PSD, apesar da confusão entre negócios privados e funções públicas do seu primeiro-ministro, se manteve como governo, é porque a esquerda não soube compreender que a realidade material pesa mais do que a discursiva, apesar de uma não andar sem a outra.
18. A vitória da AD sem maioria absoluta, e a passagem do CHEGA para segunda força política, além de indicar uma fragmentação do sistema político, resultou de condições materiais muito concretas. O PS, com o acordo do BE e da CDU entre 2015-2020, governou dentro dos limites neoliberais europeus, impulsionando políticas de austeridade subservientes às regras do euro e da divida pública. Mesmo após o final da Geringonça e do acordo parlamentar que sustentou os primeiros anos do governo de António Costa, Bloco e PCP, permaneceram associados a essa governação e às suas consequências na vida das pessoas. Em grande medida permanecem ainda hoje.
Figura 2 – Ministério da Administração Interna – Eleições Legislativas 2015, 2019, 2022, 2024 e 2025, disponíveis em: https://www.eleicoes.mai.gov.pt/. Extrema Direita agrega votação dos partidos CHEGA, ADN e Ergue-te; Direta PSD, os partidos PSD, CDS-PP, Iniciativa Liberal, Nova Direita, VOLT, MPT , Nova Direita e PLS; Esquerda, os partidos PCP-PEV, BE e Livre.
IV. As multi-crises da esquerda anticapitalista
19. Um dos grandes desafios colocados à esquerda anticapitalista é a sua relação com o sistema parlamentar do Estado burguês. Enquanto revolucionários internacionalistas, não rejeitamos por princípio a participação da esquerda anticapitalista nesses espaços: pelo contrário, a abordamos com a lucidez crítica da nossa tradição marxista. Uma tradição que nos impede de confundir a política revolucionária com uma mera gestão do possível nos marcos do capitalismo, e que nos alerta para não abandonarmos os terrenos de disputa que podem ser utilizados para desmascarar as contradições do sistema, e alargar o alcance das lutas extraparlamentares que promovem o rompimento com a ordem capitalista. A participação eleitoral e parlamentar tem assim um valor estritamente tático inserido numa estratégia mais ampla de transformação social, e jamais deve ser vista como um fim em si mesmo, ou em circunstância alguma, comprometer a mobilização direta das massas fora do parlamento.
20. No campo do sindicalismo, as crises manifestam-se de formas múltiplas. Por um lado, são o reflexo direto das transformações estruturais do capitalismo neoliberal, que fragmenta e precariza a força de trabalho e enfraquece as bases tradicionais da organização. Por outro lado, advém também da integração institucional dos sindicatos no aparelho do Estado, neutralizando a capacidade de mobilização e confronto real com o sistema.
21. Desde a década de 80, que a integração europeia, reconfigurou a economia portuguesa no sentido da desindustrialização, terceirizações e precarização. A uberização da economia, a generalização do trabalho precário, a racialização do trabalho e a redução dos sectores produtivos tradicionalmente mais organizados, tem dificultado a organização sindical clássica, e em particular o fomento da auto-organização dos trabalhadores, e aberto espaço a novos modelos de sindicalismo e sindicatos que a esquerda não tem sido capaz de acompanhar.
22. Igualmente, a crise do sindicalismo tradicional de orientação anticapitalista, dominado pelo PCP, deve-se não apenas a estas novas dinâmicas do trabalho, mas também à persistência dos enquistamentos, burocratização, falta de democracia e de dinâmica em que o modelo e política sindical deste partido o mantém preso. A esta soma-se a desistência do BE em disputar esta hegemonia quase monolítica no campo sindical, com um programa anticapitalista, capaz de articular as lutas laborais com questões sociais mais profundas como a crise da habitação, da saúde e da educação.
23. No campo da juventude, não podemos deixar de notar que entre os mais jovens o CHEGA é dos partidos que mais cresce, conseguindo mobilizar votos com as suas falsas soluções emocionais para o sofrimento social e falta de sentido de futuro. Num estado em crise de sentido comum, o CHEGA oferece respostas simples que não exigem pensamento crítico sobre a consequência dos seus atos, oferece hierarquias claras que conformam a obediência ao líder e inimigos comuns que destroem a imaginação moral da juventude. Não se trata, pois, apenas de acertar na nova linguagem digital dos jovens, mas de compreender que a atual materialidade da juventude é a solidão política, uma solidão promotora de fascínio pelo poder como substituto da liberdade onde se reconstrói uma nova identidade coletiva com um estatuto moral superior que rejeita a diferença, e o outro.
24. A culpa não é do “wokismo”. Muitos à esquerda preferem a via fácil para explicar as derrotas à esquerda adotando a narrativa da extrema-direita sobre o “wokismo”. “Woke”, termo que tem origem no estar/ser consciente para as relações de injustiça social e desigualdades, transformou-se pelas mãos da extrema-direita na ridicularização e desvalorização das conquistas sociais e de direitos humanos básicos das últimas décadas. É a instrumentalização e deturpação da política da identidade, e a exploração das suas contradições pela extrema-direita, que à esquerda não fomos capazes de responder, em grande medida porque a maioria da esquerda anticapitalista manteve uma relação de afastamento entre as lutas identitárias e as lutas operárias, quando na verdade são inseparáveis, e todas dizem respeito a formas de vulnerabilidade, exploração e precariedade que se manifestam de modos diferentes.
25. À esquerda tem faltado, por isso, a capacidade de alargar a consciência e o conceito de classe além do tradicional movimento operário, resultando que esta última entrasse em contradição com os movimentos sociais que procuraram responder à perda de um imaginário político, como o movimento feminista e o movimento LGBTQI+. Se para muitas pessoas os movimentos sociais foram porta de entrada para a política, hoje, a incapacidade da esquerda de os articular numa definição mais ampla de classe resultou na sua permeabilização por ideais liberais de direita, muitas vezes conservadores. Atualmente, os movimentos sociais estão cada vez mais a ser infiltrados por ideias conservadoras e defensivas que correspondem a um recuo dos direitos conquistados. Discursos essencialistas, que produzem lógicas punitivistas, moralistas e elitistas tem afastado o potencial emancipatório dos movimentos sociais. Mesmo que isto não se verifique de forma sistemática em todos os campos à esquerda, é inegável que os movimentos sociais são hoje espaço de disputa com a direita e o neoliberalismo.
26. Falta, pois, uma reflexão profunda e uma nova conceitualização da concepção da luta de classes, uma que demonstre que a luta dos direitos sociais não está em contradição nem prejudica a luta central contra o capitalismo, pelo contrário, uma não avança sem a outra.
27. Apesar da contínua e histórica mobilização e organização dos movimentos antirracistas, a esquerda portuguesa tem demonstrado uma tremenda incompetência na forma como gere a sua relação com estes movimentos. Se defende que a luta antirracista deve estar no centro do programa da esquerda, então não pode ser condescendente nem ceder à lógica da “ordem pública”. É responsabilidade da esquerda antirracista chamar as coisas pelos nomes e não dar eco às justificações que apresentam a violência estrutural racista e política que hoje vivemos como meros casos isolados.
28. Os sujeitos racializados, protagonistas das suas próprias lutas, devem estar na frente e terem na esquerda apoio incondicional. A contínua insistência da esquerda em enquadrar a luta antirracista como momentos de descontentamento, ou como exclusivamente identitária, revela uma incompreensão do racismo enquanto estrutura fundacional da nossa sociedade. Ao invés disso, o movimento antirracista tem demonstrado ser um sujeito histórico hoje capaz de articular a contradição e a tensão que existe entre movimentos sociais com movimentos laborais.
29. Sem movimento antirracista não há como combater a narrativa anti-imigração sobre a qual se alicerçam os partidos de extrema-direita. Uma vez mais, a esquerda chegou tarde, e sem solidariedade, a esta realidade. Sem solidariedade, pois até à data, tem sido incapaz de se envolver de forma real e coletiva nos contínuos processos de judicialização do movimento e dos sujeitos protagonistas das lutas antirracistas.
30. A desinformação e a ascensão da extrema-direita não são um mero problema de comunicação. A desinformação é hoje a ferramenta da luta de classes, e serve à reorganização reacionária da hegemonia burguesa em momento de profunda crise material. Além disso, a desinformação não é apenas uma ação que permite à extrema-direita captar eleitorado, é uma profunda reconfiguração do campo simbólico a favor do autoritarismo que se constrói sobre o sofrimento real da classe trabalhadora e pelo esvaziamento da política como campo de emancipação. Combater a desinformação não se faz assim utilizando os mesmos mecanismos que a hegemonia utiliza, quantificando atenções, fragmentando realidades.
V. Voltar à militância
31. A esquerda anticapitalista precisa de identificar os sujeitos políticos e as reivindicações transitórias que permitam a ruptura com o Estado burguês e promovam o internacionalismo da nossa luta. É preciso olhar para onde pode resistir, para ser capaz de voltar a construir um programa efetivo que permita às pessoas voltar a sonhar. Recuperar a ação coletiva, a ligação honesta e humilde com os movimentos sociais, a combatividade no local de trabalho, a representação dos movimentos, a militância. Um programa que não ignore as diferenças substanciais de prática, mas também trajetórias e contextos, que saiba encontrar os pontos de convergência para a ação de resistir à vaga de direita e da extrema-direita e de construir uma alternativa ao social-liberalismo do PS.
32. À esquerda é urgente voltar às raízes, onde o porta-a-porta, o fábrica-a-fábrica, o escola-a-escola, não se faz apenas em período eleitoral, mas porque é a forma consistente de responder à desinformação e criar enraizamento para mudar a realidade material e aprofundar a realidade da militância.
33. Contra o fascismo, resistimos reconstruindo a praxis revolucionária antifascista.
Toupeira Vermelha, coletivo de militantes da IV Internacional em Portugal não-membros do Bloco de Esquerda
