
Durante meses, a partir de novembro de 2024, estudantes sérvios lideraram uma revolta sem precedentes contra o governo corrupto de Vučić. Acompanhada de dois camaradas belgas da Gauche Anticapitaliste, a autora do artigo, Gaëlle Guehennec*, foi a Belgrado para encontrá-los em maio passado.
BELGRADO - Em frente à Faculdade de Filosofia de Belgrado, estão montadas uma mesa e cadeiras de acampamento. Uma dezena de estudantes, embrulhados em cobertores, vigiam a entrada do prédio. Sobre a mesa, sudokus e maços de cigarros para passar o tempo. Os e as estudantes fazem turnos de oito horas para garantir a segurança da faculdade, que se tornou ao mesmo tempo dormitório e sede da Assembleia Popular. Aulas abertas a todos acontecem várias vezes por semana. Também se realizam assembleias decisórias onde se desenha o futuro do movimento. Os estudantes nos recebem com sorrisos, falam todos de um de cada vez e logo em seguida todos ao mesmo tempo. Dizem que estão ali desde o primeiro dia, já há seis meses.
Em 29 de novembro passado, o desabamento da cobertura da Estação Ferroviária de Novi Sad causou 15 mortes (1). Rapidamente, os estudantes reagiram com uma forte mobilização contra o regime autoritário de Aleksandar Vučić, acusado de ter confiado as obras da estação a empresas corruptas e incompetentes (2).
Num país onde é difícil criticar o poder em exercício, os estudantes conseguiram um feito notável: “despartidarizaram” o movimento, recusando-se a transformá-lo numa luta partidária num país atravessado por profundas divisões. A estratégia permitiu ampliar para amplas parcelas as reuniões, para além das linhas ideológicas. Eles articulam o movimento em torno de quatro reivindicações simples:
1. Publicação de todos os documentos relativos à reconstrução da estação ferroviária de Novi Sad, atualmente inacessíveis ao público.
2. Confirmação, pelas autoridades competentes, da identidade de todas as pessoas razoavelmente suspeitas de terem agredido fisicamente estudantes e professores, bem como o compromisso de instaurar processos penais contra elas.
3. Retirada das acusações contra os estudantes detidos durante os protestos, bem como a suspensão de todos os processos penais em curso.
4. Aumento de 20% do orçamento destinado ao ensino superior.
Em torno dessas reivindicações, a mobilização é massiva. O estudantado consegue reunir grande parte do país usando várias técnicas de mobilização, como marchas generalizadas por várias cidades, para contrariar a propaganda do Estado. A mobilização atingiu seu auge em 15 de março de 2025, quando 400 mil pessoas invadiram a capital (3). Mas o que aconteceu desde então? Por que nem a mídia europeia deixou de noticiar a situação nos Bálcãs?
O governo joga com o tempo diante de jovens exaustos
Diante da contestação persistente, o governo não demorou a reagir, ganhando tempo e instrumentalizando o calendário universitário. Estamos em fins de maio, os exames se aproximam. O governo usa o calendário a seu favor para pressionar os estudantes. Mas eles tomaram a decisão de fazer os exames, cientes de que serão reprovados. Decidiram sacrificar um ano de aprendizado pelo futuro do seu país. Em resposta a uma possível reprovação generalizada nos exames finais do ano, o governo sérvio ameaça privatizar as universidades, alegando que o sistema público é incapaz de garantir o sucesso dos e das alunas.
Diante desse jogo de xadrez, os estudantes, cada vez menos numerosos, demonstram cansaço: “no início as pessoas vinham, agora estamos exaustos”, relatam. Embora ainda apoiados pela maioria da população, o número de militantes ativos está diminuindo: “Não somos suficientes, agora nossos turnos são das 8 às 23 horas. Cada vez menos pessoas vêm para as barricadas universitárias. “Somos os soldados mais corajosos”, dizem os que resistem.
Além da pressão, eles têm que enfrentar as manobras do governo, que usa técnicas de propaganda e desacreditação pouco justas. Os estudantes denunciam os Studenti koji žele da studiraju, literalmente “estudantes que querem estudar”, termo que designa um grupo orquestrado pelo governo para acampa em frente ao parlamento para contrariar os manifestantes (4). Apesar do cansaço e das estratégias políticas perversas, o movimento resiste, graças a um funcionamento horizontal muito bem rodado.
Movimento afirma ser apolítico e apartidário, sem hierarquia
Em frente à Universidade, os estudantes tomam a palavra um atrás do outro, nenhum se destaca realmente. No início do movimento, alguns teriam tentado se impor, mas foram rapidamente afastados. O movimento não reivindica nenhum líder. Na mídia, nunca são os mesmos rostos: “queremos promover as reivindicações, não as pessoas”. O movimento reivindica uma horizontalidade total: “somos contra a hierarquia”. Eles também se dizem apolíticos e apartidários para, com isso, reunir o maior número possível de pessoas e evitar tentativas de capitalização pela oposição política ou mesmo por certos professores que querem tirar proveito do movimento para obter cargos em um eventual governo de especialistas.
Movimento é atravessado por profundas divisões políticas
Por trás da fachada apolítica, contudo, surge uma linha ideológica nítida. Os estudantes de filosofia explicam: “este é um movimento comunista por essência”. Eles defendem a ideia de uma Frente Social que daria o poder ao povo: “deixem o povo decidir”. A Frente Social ainda não existe como entidade formal na Sérvia, mas é uma proposta política que emana do movimento estudantil. A ideia é criar uma rede ampla e horizontal que reúna estudantes, trabalhadores, agricultores e outros grupos sociais, unidos por uma oposição comum à corrupção e ao autoritarismo do governo Vučić. Este projeto visa superar as divisões tradicionais, combatendo a capitalização por partidos, promovendo uma democracia direta e participativa (5).
A Faculdade de Filosofia a que pertencem os estudantes entrevistados, de esquerda, critica abertamente outras instituições consideradas demasiado conciliadoras com as instituições liberais. Defendem uma linha anti-europeísta e soberanista, convencidos de que a UE despreza a juventude sérvia. Em várias ocasiões, responsabilizaram a UE pelos bombardeios de 1999. “Não somos favoráveis à UE”, declaram (6). Em contrapartida, outras universidades continuam viradas para Bruxelas e parecem aguardar uma resposta da União Europeia, desejando reproduzir sociedades liberais à imagem dos outros países europeus. Em meados de maio, cerca de vinte estudantes percorreram 2 mil km, correndo de Novi Sad a Bruxelas, na esperança de uma resposta das instituições europeias, que demonstraram um apoio discreto ao governo Vučić (7).
Como a Europa e a França negociam os direitos humanos e a democracia?
No dia 9 de abril, Emmanuel Macron recebeu em Paris o presidente Vučić, sem dizer uma palavra sobre o movimento estudantil ou à deriva autocrática do país (8). Como explicar que, diante de uma negação democrática tão evidente, os países europeus desviem o olhar?
A cumplicidade silenciosa da França pode ser explicada por interesses econômicos e geopolíticos. Desde 2019, a França vem adotando uma estratégia que privilegia a cooperação em matéria de segurança e economia, em detrimento das exigências democráticas. Paris prefere abrir um novo mercado para seus investidores, em vez de lutar contra a corrupção. Em julho de 2023, Vučić assinou com Macron um contrato histórico: a compra de doze caças Rafale por um valor de 3 bilhões de euros. O presidente francês saudou o negócio fechado como uma “demonstração de espírito europeu” (9). O montante da transação é uma quantia colossal para um país onde o salário mínimo não ultrapassa os 400 euros mensais (cerca de R$ 2500,00) e reforça os laços militar-industriais entre Paris e Belgrado. A França está também envolvida em vários projetos estratégicos na Sérvia: a Vinci explora o aeroporto de Belgrado, a Michelin possui uma fábrica de pneus em Pirot. E estão em curso discussões para a construção de centrais nucleares numa parceria entre as francesas EDF e Framatome.
Esta política insere-se num quadro mais vasto denominado “estabilocracia” (10), ou seja, o apoio tácito a regimes autoritários, desde que garantam a segurança política e o acesso aos seus mercados. Ao preferir os seus contratos aos seus princípios, a diplomacia francesa alimenta um status quo geopolítico que enraíza um regime autoritário em detrimento de uma sociedade civil que clama por democracia.
A Europa do mercado, não dos povos
O silêncio francês ecoa o silêncio europeu. O presidente sérvio foi até mesmo parabenizado publicamente pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que elogiou seu “senso de responsabilidade” e o “potencial econômico” da Sérvia, sem dizer uma palavra sobre as violações de direitos democráticos e a corrupção do regime. Em 2023, sob o pretexto da transição ecológica, a EU relançou um projeto mineiro da Rio Tinto, muito controverso, de extração de lítio na Sérvia. Suspenso em 2022 graças a uma mobilização ecologista e cidadã, o projeto visa abastecer a indústria europeia, em detrimento dos ecossistemas locais e da população diretamente afetada. A juventude sérvia está sendo sacrificada no altar da transição “verde” europeia (11). Naquele ano, a Sérvia recebeu a maior subvenção europeia de sua história, mais de meio bilhão de euros para a renovação do corredor ferroviário Belgrado-Niš.
É importante lembrar que a Sérvia é um ponto estratégico para Bruxelas. Ela está localizada na rota dos Bálcãs e permite à Europa Ocidental externalizar o controle migratório. A Sérvia funciona como um tampão e permite expulsões ilegais, violência policial e negação dos direitos humanos (12). Assim, a Europa não se suja as mãos e Vučić, ao tornar-se guardião da “fortaleza”, compra a indulgência política de Bruxelas. A UE também teme uma virada para a Rússia, parceira econômica e mercado potencial. Apesar de seu status de país candidato à adesão à UE, a Sérvia se recusa a adotar as sanções europeias contra Moscou.
Ao manter laços econômicos com a Rússia, Vučić joga habilmente com sua aparente posição de “não alinhado”, oscilando entre promessas de integração europeia e proximidade assumida com o Kremlin. Esse jogo duplo preocupa Bruxelas, que teme que Belgrado se torne um cavalo de Tróia russo no coração do continente. São tantos os interesses econômicos e geoestratégicos que justificam, para os líderes europeus, fechar os olhos a um governo iliberal e a práticas autoritárias que cabe a pergunta: para que serve a União Europeia se sacrifica a sua juventude em nome do livre comércio, da segurança e das relações geopolíticas? (13)
A “história acabou”?
A mobilização está perdendo força (14). Vučić anuncia a seus partidários que “a história acabou”. Lúcidos quanto à situação, os estudantes de filosofia de Belgrado não veem mais do que duas opções: “ou paramos o país ou haverá uma guerra civil”. Eles insistem novamente que seu objetivo principal é mobilizar os sérvios acima de tudo: “queremos mobilizar nosso povo”. Eles não querem simplesmente mudar o governo, mas todo o sistema. Enquanto os estudantes sérvios nos lembram que a emancipação não virá dos governos nem das instituições, mas dos povos em luta, podemos nos questionar sobre nosso papel na solidariedade internacionalista à sua luta, que ainda precisa ser construída.
29 de maio de 2025
(*) Gaëlle Guehennec é membro do NPA-L’Anticapitaliste, organização francesa membro da IV Internacional.
Notas:
(1) “Serie: 14 personnes inculpées pour l’enffondrement meurtrier du toit de la gare de Novi Sad, de Oman Al Yahyai, Euronews, 30/12/2024.
(2) Para contextualizar: “Serbie : Premières victoires des mobilisations étudiantes”, Catherine Samary, L’Anticapitaliste, 6/2/2025 e “Manifestations étudiantes em Serbie: “Le mouvement ne peut pas se permettre de s’arrêter maintennt”, de Vladimir Unkovski-Korica, Inprecor, 4/2/2025.
(3) “Serbie : marée humaine à Belgrade contre la corruption”., Le Monde, com AFP,15/3/205.
(4) Ver: “Camp de protestation Ćaciland”, Wikipedia.
(5) “Mouvement étudiant en Serbie : “Un État-providence, c’est ce dont notre pays a besoin”, de Novi Plamen, Contretemps, 25/2/2025. E “Serbie : un nouveau front étudiants-travailleurs”, Patrick Le Trehondat, Cerises la coopérative, 4/4/2025.
(11) “En Serbie, la lutte contre le lithium alimente une révolte historique”, Louis Seiller, Reporterre,15/5/2025.
(12) Human rights in Serbia, Amnesty International.
(14) “Serbie: malgré des résultats, les manifestations anti-Vucic perdent de leur ampleur”, Laurent Rouy, RFI, 22/5/2025.